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Tag: cinema brasileiro

“Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro”, de José Padilha.

Tropa de Elite 2, de José Padilha

Capitão Nascimento, após uma operação polêmica no presídio de Bangu I, mas apoiada pela população, acaba ganhando um alto cargo na Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. É de lá que ele planeja atuar de modo mais efetivo contra o crime da cidade – logo, porém, descobre-se que o oficial não estava tão atento às mudanças na dinâmica do crime na cidade quanto pensava.
No início, a notícia da sequência de “Tropa de Elite” me soou bastante mercenária, derivada que foi do sucesso da primeira instância da história. Certamente que esta deve ter sido a motivação inicial, pra não dizer a principal, mas ao contrário do que normalmente acontece no cinema comercial, o diretor José Padilha e sua trupe de colaboradores e roteiristas não deixaram de dar toda a atenção à qualidade na segunda empreitada contra o crime carioca do já icônico Capitão Nascimento – pelo contrário, o empenho da equipe foi tanto que “Tropa de Elite 2” consegue o impensável: supera a primeira parte da saga do oficial do BOPE. Porém, isso só foi possível devido à mudanças na essência do argumento da saga de Nascimento – algo que, certamente, não vai agradar à uma parcela considerável do público do primeiro filme.
Em “Tropa 1”, eram as atividades do BOPE no combate à criminalidade do Rio de Janeiro, bem como a considerável ilustração dos imensamente rígidos métodos de treinamento e seleção de soldados do grupo que integravam o cerne argumentativo do longa-metragem. Por consequência disso, o filme resultou em um excelente longa-metragem de ação explosiva e desenfreada, agrandando públicos dos mais variados tipos – mas ele não ousava ir muito além disso. Em “Tropa 2”, porém, com a saída de Nascimento do comando do BOPE para atuar na Secretaria de Segurança, o grupo de operações especiais perde o protagonismo em detrimento do registro desta nova esfera de atuação do capitão, o que, consequentemente, diminuiu consideravelmente o teor de ação da trama para dar espaço na história à ilustração das relações políticas e de poder e de suas várias imbricações, artimanhas e obscenidades morais e éticas decorrentes. Com essa narrativa mais reflexiva e abrangente, há grandes chances que os fãs do clássico cinema de ação, público este que compõe boa parte dos entusiastas do primeiro filme, considere “Tropa 2” um tanto mais chato e monótono que a primeira parte. Porém, este roteiro sensivelmente mais rico, que amplia a abordagem dos mecanismos e da dinâmica do crime do seu micro-foco, a sua porção mais visível, ordinária e imediata, para o macro-foco, dissecando o “backstage” da criminalidade, as suas ramificações além das fronteiras do subúrbio e da própria polícia, a exploração constante do crime pelos detentores do poder e, ainda, a potencialização da importância ficcional de Nascimento para a mudança da natureza do crime nos subúrbios e favelas da cidade do Rio de Janeiro, torna esta segunda parte bem mais relevante do ponto de vista crítico.
A mudança de abordagem também trouxe para a superfície um elemento que foi pouco explorado no primeiro filme: a instância humana da trama. Enquanto em “Tropa 1” toda a carga emocional era derivada da adrenalina das incontáveis sequências de ação e suspense que ocupavam grande parte do longa, nesta segunda parte ela muda de natureza e ganha maior destaque ao ter como origem os problemas familiares de Nascimento, que tenta levar à frente a relação bastante desgastada com o seu filho. Deste modo, a contínua sensação de tensão, que sufocou grande parte do lado humano do filme anterior, cede mais espaço para o retrato da vida pessoal conturbada de Nascimento, explorando mais intensamente a emoção do público, que acaba, assim, tendo uma ligação mais pessoal e profunda com a história e com seu protagonista – e aqui, claro, deve-se fazer dizer que isso também se deve, e muito, à atuação impecável de Wagner Moura.
“Tropa de Elite 2” é um longa-metragem claramente amadurecido: se o primeiro filme registra a ferida no corpo, o segundo retrata o vasto processo de infecção generalizada que se dá a partir do combate ineficiente contra esta. Com a equipe de produção estabelecendo como meta tornar tanto a trama como seu principal personagem mais densos e complexos, Nascimento muda e torna-se mais humano e realista ao ter alargada, pela experiência que vive no filme, a sua compreensão da criminalidade tão mais quanto o próprio retrato do crime na cidade do Rio o é, fazendo crível a transformação de um policial que vê o inimigo apenas na crime rotineiro e seus agentes mais aparentes para um homem abalado e perdido ao ser surpreendido pelo tamanho e alcance opressivos desta criminalidade, que se regenera à cada derrota sofrida. Porém, o choque sofrido é o baque necessário, pela tradição das sagas do cinema, antes de um epílogo triunfal ou shakespeareano – a saber, a morte do protagonista, o que, no caso deste filme que retrata tão bem a realidade carioca, seria o mais provável. Por esse motivo, talvez seja mesmo “Tropa de Elite 2” a conclusão mais adequada para a saga do oficial do BOPE: é melhor deixar Nascimento perdurar no imaginário coletivo em sua interminável e difícil luta contra o que ele chama de “sistema” do que encerrar sua carreira sacrificando-o no correr desta batalha – é um tanto menos realista e épico, mas acho ser mais justo para um personagem que já entrou para a história como uma dos maiores criações do cinema contemporâneo do nosso país.

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“Personal Che”, de Douglas Duarte e Adriana Mariño. [download: filme]

Personal Che, de Douglas Duarte e Adriana MarinoDois cineastas saem por vários cantos do mundo para obter informações sobre a relação que diferentes pessoas tem com a figura de Che Guevara.
Nos últimos anos, Che Guevara ganhou o foco de alguns projetos de cinema que abordaram desde o retrato de sua juventude anônima até a completa biografia de sua mítica vida de guerrilheiro revolucionário. Documentários também o redescobriram, como “Chevolution”, que se ocupa de desvendar todo o poder que envolve a emblemática foto tirada do revolucionário argentino pelo fotrógrafo cubano Alberto Korda, conhecida pelo nome “Guerrillero Heroico”. Porém, é provavelmente, >”Personal Che”, o filme dirigido e produzido pelo brasileiro Douglas Duarte e a colombiana Adriana Mariño que conseguiu encontrar um ponto de vista diferenciado para a realização de um documentário sobre Che Guevara. Partindo sempre da identificação que diferentes pessoas de vários cantos do mundo tem com a poderosa imagem feita por Korda, os dois cineastas mostram como, por conta de uma singular conjunção de fatos, aquela fotografia criou um mito único, só comparável, talvez, às imagens de Jesus Cristo. Porém, enquanto Cristo é, de modo geral, visto, conhecido, admirado e idolatrado de não mais do que dois modos diferentes, Douglas e Adriana mostram, ao entrevistar anônimos, que a adoração pelo guerrilheiro argentino desdobrou-se em diversas possibilidades, partindo da imagem óbvia de guerrilheiro comunista audaz, surpreendendo ao ser assumido como status de ícone revolucionário nazi-fascista, gerando incompreensão ao ser usado como estandarte oposicionista à regimes de esquerda, não impressionando ao ser considerado ídolo pop e causando enorme espanto ao ser visto literalmente como santo. Os dois cineastas, porém, não se limitam a puramente relatar o fenômeno das diversas personalidades que a figura de Che Guevara tomou. Paralelamente ao registro destas encarnações do revolucionário argentino, fazendo uso de um trabalho excepcional de montagem, o brasileiro e a colombiana inserem trechos de entrevistas feitas com historiadores, escritores e estudiosos do assunto explicando como isso acaba sendo possível devido ao poder singular que a foto de Korda agregou e, consequentemente, à capacidade das pessoas de tomarem esta imagem e a adequarem àquilo que lhes é mais apropriado, ignorando consciente ou inconscientemente, neste processo, todo o resto ou, ao menos, boa parte do que marcou a trajetória de Che. É deste modo que os dois diretores vão, pouco a pouco, desconstruindo a imagem que as pessoas fazem de Che Guevara e descortinando as revelações que são a grande sacada do filme: primeiro, mostram que, a bem da verdade, nenhum dos grupos citados o conhece de fato ou alimenta a sua idolatria considerando todas as facetas da vida do revolucionário latino-americano, ainda que conheçam mais de que uma parte delas; segundo, mostram que boa parcela dos que o idolatram ou admiram o fazem por inércia e impulso, ou seja, muito mais por influência da construção da figura de Guevara por agentes externos – a indústria cultural ou quaisquer que sejam – do que por um trabalho próprio de reflexão – é por essa razão que, quando estas pessoas são indagadas sobre o porquê de sua admiração, não se recebe delas, fundalmentalmente, uma resposta convincente.
Baseado neste conjunto de metamorfoses, apropriações e reversões da imagem e do mito de Che Guevara, os diretores concluem o filme sustentando a idéia lançada pelos estudiosos entrevistados de que, a partir daquela emblemática imagem, Che Guevera tornou-se provavelmente o primeiro protótipo das supercelebridades modernas, já que pouco importa o que Che realmente foi ou fez, importa a imagem que se pode produzir de Che a partir do “Guerrillero Heroico” e de toda a lenda construída a partir daquele instante único do argentino que Alberto Korda registrou quase que casualmente em suas lentes. Parece tolice considerar este evento como a gênese de uma das molas mestras do jornalismo de entretenimento das últimas décadas, mas se este não foi o evento gerador, foi e ainda é, ao menos, o mais notório e perfeito exemplo de como construir, explorar e perpetuar uma supercelebridade – para inveja da grande maioria das estrelas pop da atualidade, só Che Guevara continuará, sem esforço algum, imortalizado em camisetas trajadas orgulhosamente – ainda que não saibam bem porque – dos jovens que vieram, vem e estão por vir nas muitas décadas à nossa frente.

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OBS: legendas em português já embutidas.

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“Feliz Natal”, de Selton Mello. [download: filme]

Feliz NatalDepois de muito tempo sem ver a família, Caio chega em plena noite de Natal na casa do irmão de vida abastada, onde também encontram-se seus pais, que se separaram há muito tempo e não se suportam. Com sua visita, surgem velhos conflitos que há muito tempo ele e seus familiares não enfrentavam.
Apesar de muito conhecido pelo público pelo seu ótimo desempenho em papéis cômicos no cinema e na televisão e elogiado pelos críticos por conta de sua performance em obras dramáticas, a estréia do ator Selton Mello no comando do set de filmagem passou praticamente sem ser notada pelos cinemas e videolocadoras e, mesmo pela internet, poucos falaram sobre o filme. Os comentários neste meio mostram que “Feliz Natal” não chegou a estabelecer unanimidade de opinião, porém é certo que é mais fácil encontrar comentários menos favoráveis ao longa-metragem. Mas estas críticas, a meu ver, são oriundas de um equívoco, pois na verdade elas são resultado do estranhamento dos espectadores às opções artísticas e de estilo do diretor, consideravelmente diversas daquelas as quais grande parte do público vem sendo condicionado no cinema brasileiro dos últimos anos. Isso já se torna algo evidente ao se verificar que a escolha do elenco difere bastante da seleção comumente feita no novo cinema de massa brasileiro: o grupo é composto por figuras consideravelmente desconhecidas do público, por atores que não estão entre os nomes mais populares do país e por outros que já foram mais conhecidos, seja na televisão, teatro ou mesmo no cinema de grande escala – os que se enquadram nestes dois últimos perfis ganharam do diretor colocação em personagens cujas tonalidades são avessas ou desmontam aquelas que tradicionalmente vivem ou viveram, principalmente na televisão. A atitude tirou os atores da sua “zona de conforto” e incentivou performances que trafegam livremente entre o intimista e o visceral – caso da veterana Darlene Glória, que incorpora uma matrona carente e amargurada que passa o filme completamente encharcada em álcool.
No entanto, as críticas formuladas sobre o longa-metragem tem como origem e alvo principal a composição do seu roteiro e de sua montagem, ambos de co-autoria do diretor com Marcelo Sindicato e Marília Moraes, respectivamente. Comumente, os que não apreciaram o filme o tem taxado de extremamente arrastado e bastante pretensioso, percepção esta que, a bem da verdade, está correta – o que não procede é a qualificação de tais características como defeito, já que um dos grandes feitos do ator e diretor brasileiro reside justamente nestes elementos de seu filme. O roteiro, ao explorar a história de um filho pródigo que retorna momentaneamente à família e aos amigos, procura fazê-lo com uma abordagem mais universal e um olhar urbano, expondo assim os conflitos latentes, o constante remoer do passado para hastear a bandeira da felicidade perdida ou para apontar erros cometidos e a letargia do desagravo dos personagens com a situação de suas vidas apelando muito mais à emoção do que à palavra, o que leva muitos dos conflitos a não serem inteiramente expostos, residindo em grande parte no campo da emoção, seja ela explícita ou, em muitos casos, silenciosa e abafada. Por sua vez, a montagem, responsável por construir a narrativa em um andamento lento e por privilegiar a filmagem em enquadramentos estudados e cuidadosamente planejados e em closes e planos desfocados e deslocados, tem por objetivo reforçar o caráter de fragmentação de sentimentos injetado pelo roteiro, ampliando e aprofundando em camadas não-verbais a exposição destes, de dores e de traumas que os personagens procuram ocultar ou que não conseguem exprimir. É na conjugação do estilo destes dois elementos de composição do longa-metragem que nasce o caráter enormemente poético do filme, o qual deu vazão ao rotúlo de pretensioso. A questão é que, por si só, a pretensão não é sinônimo de defeito, a não ser que ela não corresponda as expectativas. Porém, esse não é o caso de “Feliz Natal”, pois Selton não pasteuriza referências estético-narrativas (consideradas pela maioria como adotadas da cineasta argentina Lucrécia Martel, mas que a meu ver tem muito de Luiz Fernando Carvalho, um pouco de Júlio Bressane e episódios de Krzysztof Kieslowski, já que há parentesco de sangue entre a sequência de epifania-delírio que conjuga e expõe a fragilidade de todos os personagens ao som de uma espécie de tango consternado em “Feliz Natal” e a sequência de mesmo tipo que fecha “A Liberdade é Azul” ao som de “Song For the Unification of Europe”, do brilhante Zbigniew Preisner), ele as assimila à composição do seu próprio estilo, sem dúvidas organizado sob esta sensorialidade do esfacelamento e fragmentação emocionais e sob um amargor obscuro e abstrato, este último bastante auxiliado pela excepcional fotografia de Lula Carvalho e pela trilha sonora irretocável de Plínio Profeta. É, portanto, um genuíno trabalho autoral. E, por afastar-se tanto da idéia de cinema nacional que vem sendo construída nos últimos anos e conquistou simpatia do público e da mídia com thrillers impactantes e violentos ou comédias ancoradas em argumentos batidos, quanto do clássico drama regionalista que chafurda as mazelas sociais brasileiras, e é por isso prontamente classificado como a verdadeira identidade do cinema do país, a estréia do diretor talvez seja a mais interessante dos últimos anos no Brasil, chegando com a promessa de reforçar o pequeno e menos popular time de diretores com aspirações outras na sétima arte do país. Fico, então, na torcida e aguardo de outros filmes destes e de novos diretores, pois a diversidade de estilos e olhares é que é a verdadeira identidade da cultura brasileira.

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“Do Começo ao Fim”, de Aluízio Abranches.

Do Começo ao FimDesde a infância demonstrando união intensa, os meio-irmãos Francisco e Thomás, acabam na vida adulta iniciando um relacionamento amoroso.
O novo filme de Aluízio Abranches, que já tinha ganhado um texto de prévia aqui no seteventos.org, angariou popularidade no reino alternativo da internet por conta de vídeos de divulgação que adiantaram boa parte do enredo controverso e principalmente por demonstrar que os dois protagonistas, que interpretam meio-irmãos, se entregam com razoável ousadia e considerável naturalidade às intimidades de suas cenas de romance que demonstram contato físico sem muito receio. Porém, uma desconfiança surgiu com a divulgação destes vídeos: seria a história do filme tão vigorosa quanto supostamente o são suas cenas de romance? Esta dúvida, descobri então, tinha sua razão de ser.
Convenhamos que o senso comum diria a qualquer pessoa que um filme que se concentra em uma relação incestuosa que vai ganhando contornos visíveis desde tenra idade diante dos olhos de pais e amigos vai indubitavelmente retratar os imensos e inevitáveis dilemas morais que tal fato desencadearia. No filme de Abranches o pai de um dos garotos, personagem de Fábio Assunção, e principalmente a mãe de ambos, personagem de Júlia Lemmertz, após notar a incomum proximidade entre os dois, até ensaiam questionar-se sobre como lidar com o fato, mas de forma breve e tímida, logo omitindo-se de tomar qualquer atitude baseados no pretexto de que o livre arbítrio é direito de todos em qualquer situação. O resultado final desta postura sem censura ou qualquer esclarecimento é bastante previsível: por uma questão de lógica, isso é quase como um apoio velado que delega ao tempo o fortalecimento do sentimento que um tem pelo outro. Portanto, não surpreende que já na vida adulta, quando a relação já está consumada, amigos de ambos encarem isso com a maior tranquilidade, já que o próprio pai de Thomás e padrasto de Francisco trata a relação amorosa dos dois como uma relação qualquer entre dois amantes. É sabido, até porque o diretor afirmou em todas as oportunidade possíveis, que o filme de fato foi pensado já com esta idéia em mente – a de remover qualquer menção à conflitos de ordem moral sobre a relação dos dois, tanto no que tange a esta ser uma relação homossexual quanto por ser uma relação incestuosa. Essa é a razão do diretor ter estirpado a adolescência dos dois garotos do enredo de seu longa-metragem, livrando-se até mesmo de fazer qualquer menção à esta fase da vida de Francisco e Thomás: a idade, que já é naturalmente tumultuada, não teria como ser ilustrada sem a inserção de conturbações que a rigor ocorreriam com o florescer mais concreto dos desejos dos dois irmãos. Assim, o maior problema causado por esse pulo temporal da infância para a vida adulta não é simplesmente a perda de densidade e fundamentação para a história de amor entre eles, como afirmam outras resenhas publicadas sobre o filme, mas derivado à esta e ainda pior, a patente abordagem “higienizante” do diretor com o enredo, o que leva à uma incomensurável falta de realismo no seu desenrolar. Além disso, o artifício adotado por Abranches também acaba por trabalhar contra a natureza própria de um drama cinematográfico, afastando a presença de conflitos que sejam suficientemente relevantes para engendrar a dinâmica natural do interesse do espectador pelo filme, relegando à dramas menores, um tanto tolos e até mesmo razoavelmente incongruentes, a partir da metade final do filme, o serviço de injetar algum conflito nesse controverso e nada ortodoxo mar de rosas que é a relação entre os dois irmãos.
Os outros componentes do filme, que já não seriam suficientes para justificar alguma menção positiva em vista do problema crônico que nasce a partir da abordagem do diretor com o enredo da história, só entornam ainda mais o caldo. A fotografia reforça de forma material o higienismo do roteiro, a trilha sonora tenta injetar emoção e delicadeza, mas a mim soa quase completamente cacofônica, e o elenco, incluindo os dois atores que protagonizam o filme, João Gabriel Vasconcellos e Rafael Cardoso, a despeito de sua desenvoltura nas cenas de romance, surgem absolutamente apagados em praticamente qualquer cena que estejam inseridos. Apagado, aliás, é o termo que define com exatidão este filme de Aluízio Abranches, tão desprovido de ânimo que é para até mesmo ser qualificado como ruim, o que motivou os internautas e blogueiros a rotularem a película como uma espécie de “comercial gay de margarina”. Quem gostou, ao contrário, enxerga em “Do Começo ao Fim” o “Brokeback Mountain” brasileiro. Eu, mais uma vez, tenho que confessar que os críticos não rotularam adequadamente o filme e os adoradores estão enormemente equivocados. Com todo o excesso de cautela que contaminou a concepção e produção do filme, a meu ver ele está mais para uma fábula crocante, com recheio picante e encoberto com suave polêmica, ao invés de um comercial gay de margarina. Quanto ao elogio, ao contrário deste filme aqui, o longa-metragem de Ang Lee é enormemente realista. Pois é, mesmo não gostando de listas de “Top” e “Best Of”, estou apostando que “Avatar”, mesmo com toda a pirotecnia de milhões de dólares e com dez longos anos de produção, deve logo perder o título de maior filme de fantasia da década para “Do Começo ao Fim”.

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“Budapeste”, de Walter Carvalho.

BudapesteJosé Costa é um ghost-writer, um escritor que põe seu talento a disposição de quem deseja ter um livro publicado, delegando a autoria de sua própria obra para estas pessoas e relegando-se ao anonimato. Casado por conformidade, é quando José decide ir à Europa para uma convenção que ele conhece Budapeste, cidade em que sua vida ganharia novos contornos.
Ao finalizar o breve discurso que fez antes da exibição de seu novo longa-metragem no FAM 2009, Walter Carvalho dirigiu-se à platéia dizendo, “vou pedir uma gentileza: gostem do filme”. O problema, porém, é que eu não poderei ser gentil.
Walter, muitos devem saber, é um dos diretores de fotografia mais requisitados do cinema brasileiro, com um trabalho impecável de iluminação. E justamente aí está o elemento que problematizou todo o seu trabalho como diretor de “Budapeste”: é a partir do seu olhar treinado para processar incessantemente o belo que existe em (quase) tudo que nascem as problemáticas visíveis no longa-metragem.
Por uma enorme ironia, é a fotografia do longa-metragem que se percebe como problema mais notável de “Budapeste”. Executada por Lula Carvalho, ela traz à tona a elegante antiguidade da capital da Hungria, tingindo-a em matizes poéticos, porém, certamente seguindo as diretrizes de Carvalho, sua fotografia também causa cansaço por retratar a nudez feminina do modo mais cliché possível, num amontoado de sombras e nuances óbvias para denotar a beleza, sempre sedutora para qualquer fotógrafo, das curvas e detalhes do corpo das mulheres. Isso, somado a forma demasiadamente contemplativa com o que o diretor filma o nú de suas atrizes e a trilha descaradamente óbvia, que tenta ampliar ainda mais o encanto feminino, soa tão excessivo que acaba resultando em um amontoado de cenas de sexo cuja definição mais imediata é o brega.
Por falar em trilha, ela se configura como outro problema do longa-metragem – tanto na sua própria composição como no procedimento de utilização adotado. Embora alguns momentos detenham uma beleza consistente extraída de arranjos sutis, em outras a composição se apresenta com uma harmonia tão destoante que fica mais parecendo uma sintetização barata para sonorizar uma novela qualquer do que uma peça orquestral feita para o cinema. E a insistência em utilizá-la para banhar qualquer cena em contornos dramáticos ou efusivos não poucas vezes resulta na mais pura desarmonia audiovisual – é por isso que, por exemplo, metade do brilho da cena da estátua de Lênin no rio Tâmisa é destruída.
Estes, porém, são componentes isolados, estorvos em sequências que não necessariamente são um equívoco. Desastre mesmo foi o cometido por Walter Carvalho na sequência do sonho, parte do epílogo da trama. Ao conceber a cena o diretor conseguiu obter o maior feito do seu filme: reunir, em uma única sequência, todos os elementos problemáticos de “Budapeste”, transformando em equívoco inclusive o que não era até então. Trilha, fotografia, direção de atores, enquadramentos de câmera, tudo foi trabalhado de forma a resultar na sequência mais embaraçosa do filme, convertendo o delírio, que com uma atmosfera sombria poderia ganhar impacto e causar calafrios, em um teatrinho kitsch da pior espécie – do jeito que está, encoberto por uma trilha óbvia, uma fotografia tosca e uma composição descaradamente farsesca, a único impacto garantido é o de causar gargalhadas constrangidas.
Mas é bom avisar que as falhas não se contentam em assolar os aspectos técnicos do filme – o roteiro adaptado do livro de Chico Buarque pela roteirista e produtora Rita Buzzar também partilha deste mérito indesejável, já que a adaptação não sabe como fundamentar as atitudes de seu protagonista – por isso é que fica difícil compreender porque Costa se revolta ao cometer o mesmo erro duas vezes, quando vê entregue à outro o sucesso de um livro cuja autoria relegou – e não consegue equilibrar suas idiossincrasias comportamentais – tornando sua defesa apaixonada pela integridade da literatura, que já soava excessivamente diletante, em algo grotesco, uma vez que ele próprio contribuiu contra ela.
O livro mais celebrado de Chico Buarque merecia uma adaptação menos afeita a tantas obviedades, incongruências e equívocos que acumulam-se em um painel final desastroso. Tivesse Walter Carvalho, ao ocupar a cadeira de diretor, se livrado dos paradigmas do belo incutidos em seu olhar pelo hábito da fotografia e o resultado teria sido bem mais elegante e consistente – aí, quem sabe, ele não precisaria ter que mendigar a gentileza do público em gostar de seu filme.

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Prévia: “Do Começo ao Fim”, de Aluízio Abranches.

Do Começo ao FimAo ter sido informado do vazamento na internet do promo de cerca de 4 minutos do seu filme “Do Começo ao Fim”, que nem teve finalizada sua pós-produção e sequer tem qualquer data de lançamento confirmada, o diretor Aluízio Abranches pensou imediatamente em tomar medidas para retirá-lo do ar. Mas, ao verificar que em pouquíssimo tempo o vídeo se multiplicava em mais e mais páginas no YouTube o diretor se deu conta do óbvio – não há como lutar contra o poder de compartilhamento da rede – e entendeu que até poderia sair ganhando com o episódio. Primeiro, porque o vídeo está servindo para divulgação do filme, provocando o famoso boca-a-boca que atiça a curiosidade do público. Segundo, porque a discussão razoavelmente acalorada nas páginas que detém os vídeos do filme já lhe serve de prévia para que ele tenha uma idéia antecipada da inevitável polêmica que seu longa-metragem vai gerar quando do seu lançamento. Polêmica esta que só não vai ganhar espaço em veículos mais tradicionais, famosos e populares da imprensa brasileira por conta do teor de sua história: um romance entre dois rapazes que são irmãos – na verdade, meio-irmãos, pois segundo a sinopse do roteiro eles são filhos apenas da mesma mãe, interpretada por Julia Lemmertz, atriz cara ao diretor Aluízio.
Sim, o filme fala declaradamente de um amor incestuoso, que nasce na infância como uma ligação de imensa proximidade, apoio e carinho entre os irmãos Francisco e Tomás e se concretiza como relação amorosa na vida adulta e, portanto, não há como não dizer que o diretor pegou um pouco pesado – palavras de Lucas Cotrim, o próprio ator que interpreta Francisco com 11 anos de idade. Claro que a idéia enormemente controversa de ousar lidar com dilemas morais tão sedimentados gerou dificuldades para achar financiamento adicional, além daquele que o diretor já dispunha. Idéias para suavizar ou subverter a essência da história não faltaram: houve quem sugerisse trocar os irmãos por primos e até quem dissesse que topava financiar se Abranches colocasse duas irmãs ao invés de irmãos (o que não é de causar surpresa, visto que parte da idéia tem relação com o fetiche heterossexual masculino mais emblemático, o do lesbianismo, que recebe tratamento mais “naturalizante” do que aquele arquitetado por Abranches), mas o diretor brasileiro foi insistente e conseguiu ajuda financeira de dois empresários que, obviamente, exigiram total anonimato.
No entanto, após sentenciar o peso da história da qual participa, o garoto Lucas procurou emendar um elogio, afirmando que a história do filme é “muito maneira”. O elogio deve se referir, no caso, ao que aparenta ser a cautela do diretor na abordagem do tema: segundo declarações em entrevistas, Abranches procurou cercar-se de cuidados com o tratamento da história – cuidados que incluíram uma visita ao analista após o primeiro dia de filmagem – durante os quatro anos de gestação da idéia para que tivesse a certeza de lidar bem com ela, livrando-a de quaisquer excessos, particularmente os advindos de sentimentos de culpa. E, provavelmente, este é o elemento mais intrigante adicionado a história: o modo como a família dois dois irmãos reage ao perceber, na infância, a proximidade excessiva de ambos. A surpresa e o choque existem, mas a plácida compreensão complacente parece acompanhar toda a experiência da percepção da relação dos dois meninos e aparentemente suplanta qualquer possibilidade de recriminação. E por essa razão é que o promo do longa-metragem adianta que a relação entre os dois irmãos adultos se realiza sem muitos impedimentos de ordem moral.
Por sinal, a forma tão explícita como Abranches ilustra esta relação, colocando os dois atores escolhidos – o estonteante moreno João Gabriel de Vasconcellos como Francisco e o belo loiro Rafael Cardoso como Thomás – abusando de trocas de carícias e de demonstrações de paixão escancarada, configura sua abordagem como duplamente audaciosa: primeiro, por que talvez esse seja o longa-metragem brasileiro que melhor ilustra até hoje, sem pudores e com toda franqueza, uma relação entre dois homens; segundo, por expor a gênese, florescimento e consumação de uma relação incestuosa. E o diretor explora tanto esta atmosfera de erotismo entre os atores que preparou uma espécie de ensaio com os dois rapazes só de cueca e repleto de beijos apaixonados, chamegos e algumas sequências de “pega” bem ousadas para adiantar o retrato, por ele pintado, da intimidade dos dois personagens – semelhanças deste ensaio com teasers das produtoras do pornô gayforpay-me-engana-que-eu-gosto não me parecem só uma coincidência (a única diferença é a canção escolhida, que deixa o “ensaio” um tanto cafona…a música que serve de trilha para o promo, que segue a escola de Michael Nyman e Philip Glass, é radicalmente mais bela e interessante).
É bom lembrar que estas são apenas impressões apreendidas de um curta que resume o longa-metragem em 4 minutos e de informações divulgadas em artigos e entrevistas. As coisas podem, na verdade, ser consideravelmente diferentes na integralidade do filme de Abranches. Porém, mesmo que tudo não seja exatamente tão polêmico quanto parece – o que acho difícil de ser verdade -, se um punhado de cenas já gera tamanha reflexão e ocasiona discussões intermitentes por onde quer que elas passem, não é difícil prever que, ao menos, “Do Começo ao Fim” tem quase garantido o sucesso que fará na esfera cult do cinema – e não apenas do cinema brasileiro.
Para assistir ou fazer download do promo/trailer ou do ensaio com os dois atores, use os links abaixo.

(Agradeço ao sempre atento Pelvini pela dica do promo do filme.)

“Do Começo ao Fim” – promo: Youtube (assista)download
“ensaio” com os atores João Gabriel e Rafael Cardoso: Youtube (assista)download

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“Ensaio sobre a Cegueira”, de Fernando Meirelles. [download: filme]

BlindnessUm surto epidêmico de cegueira branca, incurável, atinge uma grande metrópole, despertando nos habitantes um temor que leva o governo a isolar os contaminados. Dentre eles está um médico e sua esposa, a única que permanece imune à estranha doença.
A adaptação de Fernando Meirelles do livro do escritor português José Saramago fascinou o autor da história, mas não agradou muito crítica e público, passando de certa forma despercebido neste ano de 2008, quando não razoavelmente criticado. A reação tem seus motivos: “Ensaio sobre a Cegueira” resultou em um filme com acertos e erros consideráveis, com maior peso para estes últimos.
A estética do filme é já um retrato desta ambivalência: se de um lado a incessante irradiação de tudo com uma aura branca, arquitetada pela fotografia de César Charlone, traz ao espectador o mesmo desespero e temor vivido pelos personagens, que vagam perdidos em um limbo branco, ela também cansa a expectação do filme a certa altura, “chapando” as sensações do público pela utilização excessiva do artifício. A edição também tem sua dose de sucesso e falha: apesar de conceder ritmo e dinâmica às cenas externas, nas tomadas internas ela não consegue obter o mesmo efeito, ainda que mantenha a tensão em um bom nível. Mas as aspectos técnicos apresentam apenas as irregularidades mais visíveis – é onde nasce um filme, no seu argumento e roteiro, que reside aquilo que fez este novo longa-metragem do brasileiro Fernando Meirelles ser celebrado por alguns e ignorado por muitos outros.
A história criada por Saramago no livro “Ensaio sobre a Cegueira”, e aqui adaptada por Don McKellar, instiga enormemente a curiosidade pelas duas idéias que lhe dão partida. Primeiro, a concepção de uma cegueira que não afunda sua vítima em um breu profundo, mas em um reluzente oceano branco, intriga porque parece ser ainda mais agonizante por, teoricamente, não permitir que a pessoa tenha algum descanso, já que ela passa a viver em um estado de vigília visual, por assim dizer, mesmo na escuridão. Segundo, e tão fascinante quanto a anterior, a idéia de apresentar a moléstia como uma epidemia, reservando a somente uma pessoa a imunidade à infecção confere à este personagem tanto uma vantagem sobre os outros quanto um distanciamento destes, afastando-o daquilo que iguala e une todos.
Essas duas características do enredo a princípio provocam interesse no espectador, mas a medida que é promovido o desenrolar do enredo, cada conflito inserido na história faz com que sua originalidade e caráter diferenciador sejam pouco a pouco degradados, sujeitando o enredo à idéias recicladas e lugares-comuns. A longa sequência na quarentena é o seu defeito mais gritante, reduzindo o filme a uma experiência-limite em ambiente fechado que guarda parentesco com as idéias de George Orwell – não à toa, pois José Saramago é comunista rasgado -, o que deixa o filme com um gosto de café requentado. A insistência de Meirelles em reproduzir com esmero esse episódio de “Ensaio sobre a Cegueira” também acaba por torná-lo excessivamente longo, minimizando o impacto das cenas exteriores e deixando espaço até para um epílogo “família de comercial de margarina” – tivesse a sequência de quarentena sido encurtada e o filme encerrado cerca de 20 minutos antes, com a tomada em elevação da procissão desesperançada dos cegos e sua guia por uma São Paulo ainda mais caótica que o habitual e povoada por uns poucos infelizes que jazem confusos pelas ruas, o filme de Fernando Meirelles teria superado a feição de ensaio que carrega já no título.
Baixe o filme, com legenda embutida em português, utilizando o link a seguir.

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“Nome Próprio”, de Murilo Salles.

Nome PróprioGarota nos seu vinte e tantos anos, enquanto alimenta a esperança de vir a publicar um livro, passa seus dias entrando e saindo freneticamente de relações afetivas, das quais tira muito do que escreve em seu blog.
Em coisa de quarenta minutos de duração do filme “Nome Próprio”, me veio à cabeça as declarações de seu diretor no programa Sem Censura, onde ele afirmou perceber que seu longa versa sobre o feminino e sobre a idéia de que a internet, e particularmente o blog, estão irremediavelmente transformando a produção literária. Depois disso, passei todo o restante da projeção de “Nome Próprio” agradecendo que a noção de feminino de Salles e que a sua idéia de transformação da literatura sejam realidade apenas dentro da ficção por ele criada.
Se o feminino, esta identidade que Murilo acredita ser a força motriz por trás das grandes revoluções sociais dos últimos anos, se resume ao desatino comportamental sexual e afetivo e à sustentação de uma relação sempre parasitante, inconsequente, invejosa e displicente no que tange a vivência e os sentimentos alheios, estaríamos cercados de vadias – e vadios – que passam seus dias “atropelando” e desprezando o outro de forma gratuita tão somente para sustentar suas necessidades e seu modo de vida agressivos. Não por um acaso, isso é ao mesmo tempo a essência daquilo que o filme prega como a nova revolução na produção literária – uma literatura egocêntrica e egoísta, que nos brinda com um interminável jorro do fluxo emocional de alguém que acha que o que interessa para o mundo são as divagações e os conflitos do eu, eu, eu.
Felizmente, ambas as idéias que embasam o longa se resumem à um imenso equívoco sobre a contemporaneidade, já que o feminino, fosse ele materializado em uma figura humana, esta seria regida pela coerência, pela sensatez e por uma sensibilidade suficientemente racional, enquanto o status da literatura contemporâneia, graças à tudo que é sagrado, não apenas ultrapassa e muito as fronteiras do “supra-eu” como, mesmo quando limita-se à este âmbito, é bem mais do que um “vômito lírico” pós-adolescente sofrendo de delírios de grandeza que nem a pior corrente do romantismo ousou produzir.
Há o que se possa considerar válido na produção de “Nome Próprio” – pode-se tirar algum prazer ao testemunhar o trabalho de direção, de enquadramentos e de movimentação de câmera interessantes e competentes -, mas nada é capaz de suplantar a sensação do espectador desvendar, sem nenhum deleite, a verdadeira identidade do longa de Murilo Salles, que se revela uma apologia irritante ao pior estereótipo da “geração web 2.0” – os “posers”, aquelas criaturas mergulhadas em uma ilusão e estupidez tão colossais que os faz acreditar piamente que, a exemplo do filme, são todos a mais legítima reencarnação de, ora vejam…Clarice Lispector.

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“Tropa de Elite”, de José Padilha. [download: filme]

Tropa de EliteEm 1997, com o nascimento para breve de seu primeiro filho, Nascimento, capitão do BOPE do Rio de Janeiro, pretende arranjar um oficial a altura de substituí-lo no seu posto o mais breve possível. Mas antes disso é preciso colocar em prática a exigência do governo de tornar uma das favelas da cidade segura o bastante para que o Papa se instale por uma noite na comunidade vizinha à ela.
Antes de comentar qualquer polêmica, “Tropa de Elite” é um excelente longa-metragem de ação, mais um exemplo de que o Brasil está se especializando no cinema contemporâneo do gênero. A direção é competente e merece o devido crédito, mas a alma do filme reside mesmo no roteiro muito bem escrito, que amarra diversas subtramas no todo central sem causar confusão, sem cansar o espectador e sem nunca perder o seu caráter tenso e o seu ritmo eletrizante, e no elenco afinadíssimo, em especial Wagner Moura, que está soberbo no papel do controverso protagonista, expondo com impressionante precisão o pânico medonho de seu personagem de morrer e deixar sua mulher grávida desamparada – pânico este que se torna tão perigoso para os outros, quando revertido em stress quase sociopático nas suas missões nas favelas cariocas, quanto para ele próprio, quando desencadeia reações físicas intoleráveis.
Mas o diretor José Padilha não parece muito feliz com a repercussão de seu longa-metragem. Em uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura, o diretor declarou estar sendo injustiçado, perseguido e incompreendido. Injustiçado porque a imprensa dita intelectualizada, a seu ver, escolhe arbitrariamente filmes para celebrar como obras-primas estabelecedoras de um novo paradigma no cinema brasileiro, e o seu filme, claro, não foi agraciado com tal unanimidade, chegando mesmo a confessar que não entende porque “Cidade de Deus” ganhou tal status, dando a entender que seu filme seria superior a este; perseguido porque essa mesma imprensa acusa “Tropa de Elite” de apologia fascista e, finalmente, incompreendido porque, segundo ele, o protagonista do seu longa está sendo confundido com um herói e seu filme está sendo mal-compreendido como defensor da truculência da polícia carioca. Sem parar para questionar a possibilidade de ele estar sendo injustiçado frente à algo como “Cidade de Deus” e ainda perseguido – o que não seria nada difícil -, enxergo como o verdadeiro problema a sua confessa sensação de estar sendo incompreendido. Segundo ele, capitão Nascimento, o protagonista, é um manipulador astuto, capaz de se utilizar dos sentimentos e dos pontos fracos alheios para obter o que quer e seu filme, por sua vez, condena tanto os exageros colossais da tropa de elite carioca quanto as ações condenáveis dos traficantes e dos consumidores de drogas ilícitas que, com isso, sustentam o mercado das drogas e, consequentemente, toda a desgraça desencadeada por ele. Que os consumidores de drogas, quer sejam usuários esporádicos ou viciados, sustentam a existência do tráfico, não há como eu discordar – pode não ser a única razão, e provavelmente não é, mas isso sozinho já responde por metade da culpa. Quanto ao seu filme fazer uma apologia da violência da tropa de elite do Rio de Janeiro, eu diria que pior seria fazer apologia da violência dos criminosos, também muito bem exposta em sequências do próprio longa-metragem de Padilha – entre os criminosos e os policias, com licença: eu fico com os últimos, por mais violentos que sejam seus métodos. Agora, sobre o filme conseguir criar, no espectador, um sentimento de identificação com o capitão Nascimento, assim como com os outros integrantes da tropa, quer ele goste ou não, isso é um fato – e não vejo problema algum quanto a isso. Mas o diretor vê. E é fácil perceber o porquê logo que você assista a qualquer entrevista de Padilha: o maior e único problema de “Tropa de Elite” é a febre de egolatria que se abateu sobre o seu diretor. A meu ver, a origem do conflito é que Padilha parece não querer entender que, apesar de a intenção do autor contar para o sentido de uma obra, quando esta encontra-se acabada ela fica livre para ser interpretada pelo seu público e o sentido dado pela maioria do público não deve nunca ser ignorado – e Padilha não apenas está o ignorando como está o rechaçando e depreciando, o que é, no mínimo, uma imensa falta de respeito com o seu público e, na pior das hipóteses, considerá-lo em boa parte ignorante. Não passa pela cabeça do diretor que existe a possibilidade de que ele próprio pode não ter se dado conta de que este sentido existe no seu filme, sendo devidamente captado pelo seu público. Pra mim parece óbvio que uma obra pode ter mais de uma interpretação adequada, e uma interpretação só se torna irrelevante e deslocada quando não há dados na referida obra que a suportem – dados que, no caso de “Tropa de Elite”, são de fácil observação e coleta até mesmo por conta da narração em off do protagonista, que não tem qualquer pudor de revelar para o público suas intenções e emoções – ou quando os dados de uma outra interpretação se mostram mais qualificados. E a interpretação que o diretor quer dar à “Tropa de Elite” em nenhum momento se torna muito mais relevante ou qualificada que a do público e crítica, que vê com satisfação as ações violentas do BOPE porque entende que o grupo não conseguiria agir de outra forma dada a realidade estúpida e caótica que é obrigado a enfrentar, e se mostra capaz de simpatizar com o capitão Nascimento porque, dada a situação em que se encontra, entende ele muito mais como alguém humano do que um sujeito frio, manipulador e aproveitador.
Padilha parece ter se afobado um pouco demais com o sucesso. Como jamais esperou receber tanta atenção de tão diferentes holofotes – os da imprensa, os dos intelectuais, os do público qualificado e os do “povão” – o diretor parece ter se arrependido do discurso categórico de seu filme e de seu fenômeno comercial, e resolveu amainar o peso destas duas coisas aproveitando toda e qualquer oportunidade para, aparentemente, posar de cineasta intelectualizado, e profundamente autoral ao dizer “vocês não entenderam nada” – ele chegou mesmo ao ponto de discordar das conclusões do maior contribuidor do argumento de seu filme que, para mim, seria, muito antes do diretor, o grande responsável pelo seu sentido e sua essência hiper-realista. Ao invés de demonstrar arrependimento das dimensões e da identidade que sua obra tomou o diretor devia assumi-la fervorosamente, afirmando-a como cinema comercial de excelência capaz de retratar a realidade caótica, dilacerante e selvagem de uma das maiores e mais famosas regiões urbanas do mundo. Mas, talvez isso seja só uma loucura temporária: acabo de ler neste site que Padilha foi bastante cordial ao responder o comentário gratuitamente grosseiro de Hector Babenco sobre o porquê do filme não ter sido selecionado como candidato brasileiro ao Oscar. Tomara mesmo que esses rompantes de egocentrismo confuso deste diretor tão promissor sejam apenas fruto de uma repentina febre “Lux Luxo” (ou, para quem não entendeu: “Sou uma Diva!”)
Utilize os links a seguir (na surdina porque sou capaz de ser perseguido pelo capitão Nascimento por conta disso – que meda!)

OBS: links funcionais mas não testados.

em 4 partes e bem menor:

Um

Dois

Três

Quatro

ou um desses maiores:

Opção Um

ou

Opção Dois

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“Quanto vale ou é por quilo?”, de Sérgio Bianchi.

Quanto Vale Ou É Por_Quilo?Estórias de vários personagens se entrelaçam na sua relação com ONGs beneficentes e as falcatruas resultantes destas.
Não há muito como fazer um resumo de um filme do diretor brasileiro Sérgio Bianchi: seus filmes lembram a estrutura de alguns longas de Robert Altman e, no conteúdo, suscitam a ousadia de tratamento do tema que Lars Von Trier costuma ter. A diferença é que Bianchi enxerga o mundo – mais espeficamente o Brasil – de uma maneira ainda mais caótica e pessimista – alguns poderiam chama-lo de “porra louca”, e não estariam muito errados. No filme anterior, “Cronicamente Inviável”, Bianchi já fazia um ensaio sobre este seu novo longa, mostrando a miséria social e a inobservância governamental sobre os males que afligem o povo. Quando retratava as classes mais altas, ou mesmo aqueles que não eram ricos mas que não poderiam ser classificados como “miseráveis”, foi apenas para mostrar que na sua relacão com os párias da sociedade só poderia haver desprezo ou cinismo predatório travestido de caridade. No entanto, o filme não se concentrava em um único tema, discutindo de maneira caleidoscópica várias questões ao mesmo tempo.
Talvez por isso Bianchi tenha decido que em “Quanto vale ou é por quilo?” iria aprofundar sua investigação sobre esta relação e as suas consequências. Toda a crítica fundamentada neste seu último filme tem as organizações não-governamentais e seus inúmeros projetos socias como fio condutor e relacional: todos os personagens se encontram de alguma forma relacionados com estas entidades e suas ações. ONGs, para o diretor brasileiro, são apenas o mais novo mecanismo de exploraração social e econômica, a maneira legalizada daqueles que não pertencem a classe política de agir de maneira tão condenável quanto estes no exercício de suas funções.
Os personagens criados por Bianchi sempre agem movidos por intenções excusas, com o objetivo de lucrar – quaisquer que sejam os lucros – a todo custo. Todos acabam sendo corrompidos ou coniventes em algum momento por uma razão qualquer, e se causam algum benefício para o outro, isto acaba sendo puramente acidental, uma vez que a motivação sempre é o benefício próprio. Para Bianchi, as pessoas não costumam ter mais nenhuma ingenuidade ou inocência e, se por um acaso mostrem ter, eles a perdem tão logo o filme chegue ao seu final, independentemente de classe social ou raça ao qual pertençam: pobres, ricos, brancos, negros, qualquer pessoa acaba contribuindo para o conservação do estado de pobreza e violência em que se encontra a sociedade brasileira.
É bem verdade que isso acaba cansando, para não dizer ser bastante discutível, pois seu pessimismo e descrença no ser humano acaba sendo por demais radical e anárquico. No entanto, mesmo que você discorde da maneira como a gênese da inter-relação do problemas é pelo diretor vista, ninguém pode negar que Bianchi é dos únicos diretores que tem a coragem de realizar obras que devassam, de maneira tão sincera e crua, a realidade social brasileira – e por que não dizer, mundial? Tendo assistido apenas dois de seus filmes, posso ter alguma segurança em declarar que o diretor basicamente quer mostrar que muita coisa melhoraria se extinguíssemos duas coisas em nosso comportamento social/pessoal: o cinismo e a demagogia. São apenas duas atitudes com os quais podemos desenvolver nossa relação com o mundo, mas se livrar delas não é tão fácil quanto parece, como pode-se observar em “Quanto vale ou é por quilo?”. Infelizmente, sou obrigado a concordar pelo menos em um ponto com o diretor brasileiro: não há uma solução fácil para o caso. Isto se realmente existir alguma solução.

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