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“Melancolia”, de Lars Von Trier.

Melancholia, de Lars Von Trier

No dia do seu luxuoso casamento, realizado no castelo do marido de sua irmã Claire, Justine pressente que a Terra perecerá em uma colisão dentro de pouco tempo com um imenso planeta chamado Melancolia.
A primeira impressão que se tem de “Melancolia”, minutos após tê-lo assistido, é que, assim como aconteceu em “Anticristo”, Lars Von Trier não esmerou-se muito na trama, já que pouca coisa de fato acontece, e assim concentrou todos os seus esforços em alimentar uma vez mais suas obsessões estéticas. Mas analisando com mais cuidado, observa-se que apesar de partilhar alguns “cacoetes” artísticos com o filme anterior, “Melancolia” é um trabalho no qual o diretor dinamarquês, ainda bem, recuperou boa parte de sua força e sensatez artística, tanto no que se refere à estética quanto ao seu conteúdo.
No que tange à primeira instância, visualmente “Melancolia” é um trabalho sóbrio e equilibrado. Ao contrário do filme anterior, estilizado ao extremo pela utilização constante de diferentes combinações técnicas, fossem elas produto da filmagem, fotografia ou edição, desta vez o diretor dinamarquês decidiu adotar um estilo mais sóbrio e consistente: à exceção do longo prólogo ao som do prelúdio de “Tristão e Isolda”, onde Trier despejou todo o seu ardor estético, o restante do filme sustenta-se sobre uma estética requintada, simples e direta, onde apenas dois elementos acabam se sobressaindo por sua utilização um pouco mais ostensiva como artifícios da narrativa: o já citado prelúdio da ópera de Wagner, que em meio à aridez sonora pulsa como o prenúncio da fatalidade, e a imagem imponente e traiçoeiramente plácida do gigantesco planeta Melancholia, que ganha cada vez mais peso na segunda parte do filme.
Mas é na instância primeira de qualquer filme, o roteiro, que residem as grandes virtudes do novo longa-metragem de Lars Von Trier. Montando a trama sobre uma estrutura clara e sólida – um prelúdio que resume os eventos da história, mais dois atos, cada um centrado em um protagonista e um evento (Justine e sua festa de casamento e Claire e o advento do fim do mundo) -, o diretor e roteirista vai desenvolvendo com calma os personagens – é sem pressa que, por exemplo, compreende-se a razão do comportamento um tanto bipolar de Justine na festa do seu matrimônio, quando alternou momentos de sincera alegria com intenso desgosto pelo evento que a cercava -, e explorando vagarosamente a trama tanto para atingir sem resvalos seus propósitos, quanto para não obscurecer o peso do seu próprio desfecho, que por ter sido revelado ao público nos seus primeiros minutos acaba, ironicamente, por despertar ainda maior ansiedade. Assim, retomando total poder sobre seu característico talento em devassar o âmago dos seus personagens (contando pra isso, claro, com o trabalho soberbo de todo o elenco, principalmente das duas protagonistas) e amarrando este processo à própria mecânica de desenvolvimento da trama, o diretor dinamarquês faz da primeira parte do filme tanto o fundamento psicológico que explica o modo como os personagens vão reagir à iminência do fim do mundo quanto uma analogia à própria hecatombe ao mostrar o quão sem sentido são os ritos e formalidades que infestam nossa vida e o quão cínicas e demagógicas são as relações humanas e a vida de aparência construída pela maioria. Deste modo, a festa de casamento de Justine é metaforicamente o próprio fim do mundo, e não metaforicamente a ilustração clara e absoluta da declaração dada pela personagem à sua irmã na derradeira segunda parte do filme: “The Earth is evil. We don’t need to grieve for it”. E não há mesmo porquê sofrer: Lars Von Trier desintegra a Terra e toda a vida existente no universo em um impiedoso exercício de niilismo e pessimismo, mas é ao fazer tudo isso que se redime, com folga, dos excessos de suas últimas obras – ironia tão ao gosto do diretor que, não fosse pura arbitrariedade, poderia pensar ser absolutamente proposital.

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“V de Vingança”, de James McTeigue.

V For VendettaNa Inglaterra de um futuro não muito distante, jovem garota tem contato com um justiceiro mascarado que, aos poucos, lhe revela a verdadeira faceta da sociedade em que vive: uma nação que foi manipulada para aceitar um regime ditatorial que, de maneira sutil, se livra daqueles que julga nocivos ao convívio social ou que simplesmente se opõe à este regime.
O filme de James McTeigue, com roteiro dos irmãos Wachowski, reponsáveis pela concepção e direção do universo de “Matrix”, é uma adaptação realmente competente da Graphic Novel original de “V de vingança”. O roteiro resume de maneira eficaz os acontecimentos da mini-série dos quadrinhos e consegue despertar e manter o interesse do desenvolvimento dos acontecimentos, ao mesmo tempo que dosa isto com boas cenas de ação. A direção é forte e segura e as atuações, principalmente de Natalie Portman e Hugo Weaving – mesmo atrás de uma máscara o tempo todo – tem o “timing” ideal para um filme do tipo. Claro que, em se tratando de uma superprodução de Hollywood, é impossível que os mais entendidos em cinema não se irritem com um certo uso excessivo de estilismos visuais, principalmente na sua sequência final – me refiro às câmeras lentas, às chuvas providencialmente belas, à captura precisa da trajetória de facas e esquichos de sangue, entre outras coisas. No entanto, trata-se sim de uma excelente diversão descompromissada bem acima da média do gênero – e até mesmo bem melhor que, “Matrix”, a criação maior dos roteiristas -, já que retrata uma estória que envolve manipulação social e política, opressão e preconceito. Também é certo que justamente estas características pesem aí boa semelhança com o genial “1984” de George Orwell mas, a bem da verdade, apesar das semelhanças, a estória de “V de Vingança” consegue criar seus próprios ícones e rumos. Assim sendo, vamos torcer para que as adaptações de obras dos quadrinhos continuem trazendo uma boa quantidade de êxitos, como estamos tendo a sorte de ter nos últimos anos.

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“Manderlay”, de Lars Von Trier.

ManderlayDepois da experiência em Dogville, onde a presença de Grace alterou os rumos da vida de todos os que lá viviam, a jovem chega a Manderlay, acompanhada de seu pai e seus gangsters. No momento em que se preparavam para ir embora uma mulher negra implora por socorro. Entrando nas dependências da fazenda descobrem que os proprietários do local mantém o regime da escravatura, mesmo depois de 70 anos de sua abolição. Grace interpela pelos escravos subjugados e decide ali permanecer, acompanhada de gangsters de seu pai, até garantir que os ex-escravos descubram como (sobre)viver em regime de liberdade e que seus ex-senhores tenham assimililado a concepção de que eles agora são livres e tão plenos de direitos quanto eles próprios.
Lars Von Trier é, como alguns diretores que constroem um projeto cinematográfico, presunçoso e ególatra. Porém, vindo dele isso é plenamente aceitável, já que ele possui todos os fundamentos para sê-lo: o diretor dinamarquês é um dos cineastas vivos mais geniais. Enquanto a imprensa propaga que o cinema oriental é a vanguarda do novo século, Von Trier mantém o trabalho mais verdadeiramente coeso, ousado e “avant-garde” da atualidade, criando e recriando seu cinema de uma forma inimaginável.
Apesar de avaliar o primeiro filme da chamada trilogia “Terra das oportunidades” como o mais fraco já produzido por Von Trier, ainda assim um filme seu é sempre melhor do que a maior parte do que é lançado durante todo o ano. Meus problemas com “Dogville” são a sua estética seca, seu argumento um pouco infantil e a óbvia presença de Nicole Kidman, que apresentou uma boa atuação mas que também causou enjôo, já que na época ninguém conseguia pisar em uma videolocadora sem trombar com algum dos inúmeros filmes que ela vinha fazendo. No entanto, em “Manderlay” Lars conseguiu amadurecer sua crítica aos Estados Unidos e à seu povo, concebendo uma fábula mais sombria e desesperançada.
À exceção de Lauren Bacall, que marca uma presença rápida como outro personagem, e do onipresente Jean-Marc Barr – ator fetiche do diretor dinamarquês – os personagens que marcaram presença no filme anterior retornam neste longa personificados por outros atores. Grace, por exemplo, muda de aparência, sendo aqui interpretada por Bryce Dallas Howard – filha do diretor Ron Howard. Esta é uma idéia interessante do diretor, já que ao mesmo tempo que abre caminho para novas nuances na personalidade do personagem ainda tem a obrigação de preservar os traços que foram anteriormente apresentados. Isso acabou gerando um problema, percebido por alguns críticos: Grace volta neste filme com um furor idealístico ainda maior, reforçando o caráter ingênuo da personagem. Isso não deixa de ser uma contradição, visto a experiência que Grace viveu em Dogville. No entanto, também não deixa de ser relevante a insistência nestes mesmos traços da personalidade da jovem ruiva, já que tudo nela é uma metáfora da América e de sua cruzada pela justiça, liberdade e democracia pelo mundo.
E já que entramos na questão do simbólico, qualquer pessoa mais esclarecida que assista ao novo filme de Lars Von Trier vai reconhecer na estória uma analogia à invasão americana ao Iraque: os delírios idealistas de Grace; a imposição na vida alheia daquilo que acha moralmente correto, e com o uso da força, se necessário; seus atos baseados em decisões impensadas; sua ingênua ignorância das diferentes concepções de valores e conceitos – tudo remete ao modo de pensar e agir da América e da maior parte de seu povo.
A cenografia da segunda parte da trilogia continua minimalista: um palco com fundo escuro, iluminação teatral, objetos cenográficos pontuais, marcações no chão propositalmente visiveis. Já comentei não ter gostado do experimentalismo teatral em Dogville, mas é fato que neste segundo filme o público já entra mentalmente pré-disposto a assimila-lo mais rapidamente. E Lars consegue mostrar estranha simbiose entre o visual desidratado da ambientação das cenas e o esporádico uso de alguns efeitos especiais muito bem aplicados, que servem de apoio direto ao argumento do filme. O efeito de uma tempestade de areia em pleno palco, por exemplo, é ao mesmo tempo de constraste e complementação.
Depois de toda essa experiência de cinema, ironicamente concebida com uso violento de recursos teatrais, Lars ainda reserva uma surpresa – das mais chocantes – nos créditos finais do filme, ao som da famosa canção “Young Americans” do britânico David Bowie. Não cometa o pecado venial de parar o longa antes de observa-lo até o fim. O diretor dinamarquês evita poupar seu público até mesmo neste momento, normalmente a sequência mais puramente formal de um filme. Lars Von Trier não tem mesmo quaisquer pudores em concretizar suas idéias, por mais doentias que possam parecer.

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