Em meio à monotonia de seus afazeres diários, Georg, sua esposa Anna e a pequena filha Evi, família austríaca de classe média, toma uma decisão surpreendente.
Com uma carreira já consideravelmente longa dirigindo filmes para a televisão austríaca, quando fez sua estréia no cinema com o longa-metragem “O Sétimo Continente”, em 1989, o diretor alemão Michael Haneke já tinha seu famoso estilo meticuloso e clínico completamente depurado. Baseando-se em uma história real que chocou a Áustria nos anos 80, Haneke desconcerta o espectador ao permanecer mais de dez minutos iniciais do filme focando suas câmeras apenas na interação dos três personagens com objetos e itens do seu cotidiano, sem nem por um momento revelar seus rostos e emoções, recorrendo ao artifício em pelo menos mais duas longas sequências da película, a última delas particularmente perturbadora. Em se tratando de Haneke, esse recurso estilístico não é meramente uma decisão de caráter estético, é certamente uma ferramenta importante para atingir seu objetivo. É com o uso deste recurso que Haneke retrata a interminável sucessão diária de ações mecânicas que ocupam a maior parte de nossa vida, algo do qual com muito pouca frequência nos damos conta. Mas ele não para por aí: ao separar estas cenas por intervalos “cegos” com a tela completamente vazia, o diretor alemão sugere que entre o eterno roteiro de ações inócuas há verdadeiros vácuos de vivência onde nossa existência fica praticamente em estado de suspensão. Achatadas por essa rotina de automação e descaracterização de nossa subjetividade e humanidade, mesmo as poucas cenas que retratam a interação afetiva entre os personagens, a bem da verdade, ou acabam de algum modo mostrando-se perfiladas como parte desta automação ou não se mostram suficientemente fortes e concretas para vencê-la: é por essa razão que mesmo quando Anna expressa seu carinho pela filha Evi ou quando Georg e sua mulher fazem amor com alguma satisfação visível tudo parece carecer de uma dimensão mais real, já que estes atos são atravessados por uma letargia emocional que impede que tais sensações possam ser vividas e expressas em sua completitude e profundidade e retira-lhe sua real significação como algo essencial para levar à frente nossas vidas.
A conclusão disto surpreende o espectador, mas ao mesmo tempo, não poderia ser outra, e frente o impasse existencial que muitos à certa altura experimentam por não encontrarem razão e sentido para o que fazem, Georg, Anna e Evi tomam uma decisão drástica que sela o destino da família e, curiosamente, a executam com a mesma serenidade e mecanicidade que envolve todos os atos rotineiros cuidadosa e inteligentemente retratados pelo diretor alemão.
Sempre polêmico e incômodo sem apelar ou cometer concessões, ao registrar fria e implacavelmente a trajetória desta família, Haneke impiedosamente submete a platéia a ocupar a posição desagradável de testemunha dos fatos e, sem alternativa, obriga esta à inescapável reflexão sobre as relações humanas na vida moderna – e assim o diretor inaugurou a exploração da temática que lhe é tão cara e que persegue com incansável obstinação até hoje e lapidou definitivamente a pedra fundamental do seu cinema altamente provocador. Um cinema que não é para os mais sensíveis, é bom dizer.
OBS: legendas embutidas em português.
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