Casal de classe média-alta recebe, certa manhã, uma fita de vídeo constando filmagem de longa sequência da entrada de sua residência, acompanhada ainda de um desenho obscuro de traços infantis. Não demora muito e outras fitas e desenhos sucedem-se, sendo que uma destas revela relação com as origens do patriarca da família. O apresentador de TV e sua esposa, ambos envolvidos com o mundo literário, sentem-se mais e mais ameaçados e intrigados com a origem das fitas e com as intenções de quem as produziu.
Juliette Binoche e Daniel Auteuil são as escolhas corretas para este que é o filme mais recente do alemão Michael Haneke. Os dois são atores excepcionais, capazes de desempenhar papéis de todas as gamas possíveis. Aqui, eles interpretam um casal culto de classe média alta, mas que tem, ao mesmo tempo, uma natureza ordinária – não são muitos os atores que conseguiriam unir estas duas diferente nuances no mesmo personagem. Saindo do mérito interpretativo, Haneke merece todos os elogios pois, como no seu filme anterior, arquiteta uma estória complexa que se esconde sob a abordagem clássica do cinema europeu. O que a primeira vista parece um argumento que explora a insegurança da vida urbana, mostra-se, em uma camada mais profunda, uma discussão bastante cara ao cineasta: a situação dos imigrantes na França deste início de século. Georges Laurent, o personagem de Auteuil, age baseado em motivações justas, procurando proteger sua família a todo custo, mas na tentativa de encontrar o mentor das fitas misterioras, Laurent define para si um culpado e, como no passado, humilha e recrimina alguém que já sofre e encontra-se em uma situação infeliz, sem nunca ter prova definitiva de que suas suspeitas procedem e suas ações justificam-se. Alguns poderiam afirmar que o personagem age deste modo porque encontra-se tão confuso quanto o expectador, já que Haneke não apresenta no filme respostas claras à estas indagações, porém não são as respostas às dúvidas surgidas a razão de ser de “Caché”, mas sim esta analogia, muito bem posta, entre as atitudes da França e dos franceses com relação à estrangeiros, particularmente aqueles originários das ex-colônias do país. “Caché” é excepcional em sua abordagem sociológica, mas também figura como um longa de expectação consideravelmente incômoda, devido à sua temática realista e seus conflitos eminentes e constantes. A decisão de não adotar trilha sonora durante todo o filme amplia o desconforto do expectador, potencializa o realismo da trama e aproxima-o ainda mais dos acontecimentos da estória. Além dessa secura na abordagem do longa-metragem, a maneira como Haneke exibe as filmagens dos cassetes, tomando a tela com as imagens destes, põe o expectador na mesma situação dos personagens que tem sua privacidade e segurança repentinamente ameaçadas – uma idéia que, combinada com a natureza do roteiro e de seus argumentos, explora magistralmente a relação entre filme e expectador, tornando esta relação insuportavelmente tensa, mantida em um desagradável suspense contínuo.
Haneke é, a cada filme, um dos cineastas europeus com a proposta mais consistente, aliada à uma técnica apurada e um gosto pela polêmica – não à de natureza gratuita ou leviana, mas a polêmica necessária, aquela que questiona e induz à reflexão. Além de muita coisa mais, cinema também é isso, uma maneira de despertar o pensamento humano sobre a realidade e a consequência de suas ações. Apesar de, até este momento, Haneke ter se mostrado um cineasta coerente, tenho que revelar que até mesmo ele rendeu-se aos encantos de Hollywood: neste momento, o diretor está finalizando uma refilmagem, com elenco americano, de um dos seus primeiros e mais contundentes longas, chamado “Funny Games”. Vamos torcer para que esse projeto seja apenas uma curiosidade singular e pessoal do diretor, e que ele retorne logo para continuar a produzir no seu continente natal, visto que, no cinema americano, dificilmente alguém consegue produzir algo tão relevante e complexo quanto seus dois últimos filmes.