Quem te viu, quem te vê, Eugene McGuinness! Da aparência de rapazote perdido de Liverpool, com o cabelo devidamente inspirado no primórdios dos Beatles que vinha sustentando desde quando surgiu com o single “Monsters Under The Bed”, de 2007, para toda a panca de um jovem charmoso, devidamente encoberto por ternos elegantes e aparência bem cuidada. É realmente muita diferença, mas é bom lembrar que garotos crescem e viram…homens – e nem preciso dizer que crescer fez muito bem à Eugene.
Mas este post é para falar de vídeos, e veja que o novo estilo incorporado pelo cantor britânico não ficou apenas na aparência, sua música (sobre a qual falarei num post mais tarde) e seus vídeos também ganharam um perfil mais bem acabado. Se lembrarmos do ótimo vídeo do single “Moscow State Circus”, faixa de seu álbum homônimo lançado no início de 2008, estão lá alguns elementos que ainda se sustentam nos novos vídeos, como o gosto do cantor por figurantes dançando coreografias singulares no ritmo de suas composições de melodia frenética. Mas lá se foram os dias de vídeos com idéias peculiares, como esta de vestir todos como esgrimistas (inspiração derivada da capa do álbum de 2008).
O Eugene mais maduro agora gosta de ser visto na tela – e muito bem visto, exibindo-se com toda a pompa e circunstância em trajes bem cortados e legítimo estilo de um modelo da Hugo Boss, como se pode conferir no vídeo de “Lion”, lançado ano passado para o primeiro single do seu futuro novo disco. As coreografias continuam calcadas em influências modernas, mas o que chama a atenção é a predileção do artista em passar a assumir um visual mais declaradamente urbano e contemporâneo, algo bem visível na cenografia industrial do vídeo.
Porém, no seu mais novo vídeo e single, “Shotgun”, a modernidade passa a trajar-se em nostalgia, com franca influência dos grandes clássicos de suspense e espionagem do cinema e referências claras na fotografia também ao cinema noir. Porém, tanto a persona do artista britânico quanto a temática continua esgaçadamente urbana – e, claro, não pode faltar a figuração de uma dançarina em êxtase rítmico.
E ainda temos o teaser do vídeo do single “Thunderbolt”, que parece ainda mais colado à elementos urbanos e contemporâneos, com um frenesi de luzes e velocidade.
Os indies/hipsters perdem mais um artista obtuso e idiossincrático, e o pop/rock ganha mais um talento em potencial – e devo dizer que achei ótimo.
Apesar do aspecto ligeiramente mais harmonioso do que na capa de Lovetune for Vacuum, primeiro disco da austríaca Anja Plaschg, a expressão mais uma vez melancólica da garota indica que no seu segundo disco sob o pseudônimo Soap&Skin, Anja continua a decantar a dor com sutis lampejos de contentamento. A impressão que se tem ao ouvir Narrow é que desta vez a artista austríaca compôs melodias mais mais polidas e menos afeitas à experimentações com ruídos obscuros e sintetizações iluminadas, como é o caso da faixa de abertura, “Vater”, cantada em alemão: o eletronismo gótico fica restrito à sequência final da canção, já que grande parte da melodia está calcada em vocal e piano em puro virtuosismo melódico com algumas orquestrações de cordas aqui e ali para aprofundar o efeito da música. A impressão, no entanto, não corresponde exatamente à verdade, uma vez que este segundo disco da artista européia é consideravelmente menor do que o primeiro, contando com apenas oito faixas, e lida com o mesmo material melódico e emocional do primeiro: tanto em “Deathmetal” quanto em “Big Hand Nails Down”, por exemplo, temos a intensa metalurgia melódica complexa e obtusa que beira o atonal que já se tornou marca registrada da compositora, a primeira acompanhada por um órgão igualmente insólito e um vocal de múltiplas camadas de um tonalidade obscura e a segunda atravessada por um registro vocal potente e cortante. Ao mesmo tempo, há neste pequeno disco faixas com exibem a mesma faceta terna e delicada que se pode conferir no primeiro disco, caso da soturna melancolia ao piano de “Cradlesong” e de “Wonder”, que além do piano triste conta com um órgão e sintetizações sutilíssimas em harmonia algo reflexiva e vocais de apoio de um coro gospel em registro singular que subverte consideravelmente sua identidade costumeiramente sacra. Não poderia faltar uma canção que reúna todas as predileções melódicas de Anja, e esta é o single “Boat Turns Toward the Port”, que conta com piano elétrico de acordes espaçados e órgão fluído e distante sobre o singelo loop de um sample do que parece ser uma antiga caixa registradora e vocais em plena extensão harmônica, tendo como resultado uma paradoxal atmosfera contemporânea e nostálgica. E por falar em nostalgia, Narrow conta ainda com um cover do clássico do eurodance “Voyage Voyage”, faixa da francesa Desireless que foi um dos marcos do pop dançante borbulhante de sintetizadores que embalou Europa e recantos do Brasil no final dos anos 80 e início dos 90. A versão da austríaca, claro, é embebida em seu soturnismo particular, transmutada em piano, orquestração de cordas e vocais encobertos de amargura, mas também preserva e transforma em sua a melancolia que a faixa já detinha originalmente. Ao que parece, Anja não consegue resistir esquadrinhar a tristeza mesmo quando envereda pelos cânones do pop – e espero que ela não deixe de fazê-lo tão cedo.
Nascida na Suécia, Frida Hyvönen é mais uma entre várias cantoras européias que demonstram imenso talento já no início de sua carreira. Depois de sua elogiada estréia em 2005 e do projeto especial para um grupo de dança, seu álbum Silence is Wild revelou os traços de sua música de forma ainda mais complexa. Não me refiro simplesmente a dificuldade em definir onde algumas de suas melodias guiadas por piano se encaixam, cujas exemplos são as faixas “Enemy Within”, que recheada de múltiplos vocais de fundo que dialogam com o vocal principal em versos como ‘be kind and fight at the same time/one too many things to keep track of’ tem andamento que não se permite rotulações, e a esplêndida “Birds”, cuja melodia introduzida por baixo, conduzida por órgão e sintetizador para embalar letras que se servem dos pássaros migratórios para divagar sobre a passagem da vida e o que fazemos dela tem uma sutil singeleza pop, mas é por demais sofisticada para ser acomodada como tal. A complexidade que me refiro nasce na rara habilidade da cantora entregar-se ao canto sem comedimento emocional ao mesmo tempo em que consegue administrar esta abordagem mais emotiva de modo a jamais resvalar na pieguice ou exagero. É o que acontece já na faixa de abertura, “Dirty Dancing”: com um piano lacrimoso embalando a bateria, a sueca desmancha os versos em uma confissão tocante sobre uma paixão de infância que, ao reencontrar na vida adulta, mostra como nossas expectativas sobre o futuro são frustradas, para o bem ou para o mal. Lamentações de um romance em crise preenchem as notas de piano de duas faixas próximas: “Highway 2 U”, na qual o piano triste acompanha a bateria que alterna discrição e drama enquanto Frida se desfaz em um vocal de fazer sangrar mesmo os corações mais duros, e “Science”, em cujos versos temos o rompimento de uma relação onde o excesso de lógica e ponderação de uma de suas partes faz ruir toda a paixão. Contudo, a artista sueca, que se dá ao direito de brincar com o estereótipo de seu povo na surpreendente explosão de alegria de “Scandinavian Blonde”, com direito à pianos e bateria em ritmo frenético e dançante, não tem pena do coração de seus fãs. Quanto mais à frente se vai no disco, mais variadas e profundas são as emoções com as quais a cantora e compositora lida. Com uma combinação esplendorosa de vocais encobertos de emoção com melodias sofridas e delicadas, temos desde “December”, na qual Frida apresenta um piano de melodia lúdica e quase infantil apenas para denunciar o quanto a narrração irônica da visita de um casal à uma clínica de abortos disfarça a dor da situação, passamos pela poesia impressionante nas letras de “Sic Transit Gloria”, que flutua como uma ode à pequenez humana em meio à grandeza da vida e do mundo, até chegarmos à simplicidade de “Why Do You Love Me So Much”, com pouco mais que piano e xilofone para emoldurar os versos plenos de sarcasmo onde a partir do título a cantora confessa sua surpresa em ser amada por alguém apesar de toda a sua displicência afetiva. Curiosamente, Frida tem por hábito compor homenagens carinhosas à cidades que por ventura tenha visitado. Neste álbum, duas foram agraciadas com belas canções: “London!” na qual a cantora, entre observações sobre como o clima pouco atraente e os modos curiosos de seus habitantes podem parecer afastá-lo da cidade, mas são justamente o que mais atraem nela, e “Oh Shangai”, balada com vocais impecavelmente emocionantes onde piano e bateria sincopada levantam-se em um crescendo emocionante que ganha ao final a companhia de uma instrumentação mais encorpada, porém inequivocamente doce, que faz referência à musicalidade chinesa.
Fabuloso compêndio recheado de baladas melancólicas cuja sinceridade irônica de alguns versos pode soar estranha no início, Silence is Wild é um disco que à medida que mais se ouve, mais se descobre sua fustigante beleza poética e incomensurável profundidade, tanto melódica quanto lírica. Poucos cantores ou cantoras tem a coragem de derramar-se em sentimento, e menos ainda são os que tem a segurança de que podem fazê-lo sem jamais perder a elegância – Frida Hyvönen é inequivocamente uma delas.
Não está entre os meus favoritos o cineasta espanhol Pedro Almodóvar: poucos de seus filmes caíram no meu gosto. Mas nem por isso não consigo reconhecer em Almodóvar um cineasta com uma proposta muito clara e uma identidade forte. O seu mais recente filme, “A Pele que Habito”, porém, vai além: é um êxito que poucas vezes permito dizer ter o diretor espanhol alcançado.
O filme, baseado no romance do escritor francês Thierry Jonquet, lido por Almodóvar há cerca de dez anos atrás, é um primor da técnica e estilo: cada elemento é trabalhado ostensivamente para amplificar e apoiar os eventos e a composição dos personagens na narrativa, como se deve esperar sempre de diretores já consagrados. A fotografia cuidadosamente limpa e asséptica de José Luiz Alcaine ressalta o idílio dos protagonistas de modo assombrosamente clínico, os enquadramentos estudados por Almodóvar e sua equipe exploram esplendidamente o cerne emotivo e a tonalidade dramática das cenas e a música exuberante e sinistra de Alberto Iglesias, parcialmente baseada em obra que compôs há quase vinte anos para um espetáculo de dança, denota a paixão, o mistério e o suspense que são os principais elementos da narrativa. E por falar nela, o trabalho feito pelo diretor no roteiro que adapta a história criada por Jonquet é o maior mérito do filme: ao trabalhar na trama, que gira em torno de um cirurgião brasileiro com uma vida marcada por desgraças que tenta obter êxito na criação de uma pele sintética mais resistente e que se serve, para tanto, de uma misteriosa mulher como cobaia, o diretor espanhol removeu os excessos da trama original – como as coincidências exageradas que cercam a história – e humanizou um pouco mais os personagens, particularmente o cirurgião interpretado por Antonio Banderas, conseguindo, assim, trazer à trama o caráter mais realista que faltava em seu formato original. A edição estudada acaba aproveitando todo este potencial do roteiro, recortando o filme entre flashbacks e tempo presente para amplificar os mistérios da roteiro e não permitir que os segredos surpreendentes sejam revelados antes do momento planejado. O resultado é um filme que é ao mesmo tempo extremamente sofisticado e exibe uma sobriedade impressionante, ainda mais por se tratar de um cineasta cuja popularidade surgiu justamente pela falta desta, mas que nem por isso perde o caráter sensível e emocionante que é marca de alguns dos filmes mais celebrados do diretor espanhol, já que Almodóvar magistralmente faz com que o choque da revelação do maior mistério do filme aproxime a platéia do grande personagem da história, incutindo no público uma empatia praticamente infalível por este personagem. Calculado, porém surpreendente como uma performance de tango, “A Pele que Habito” fica, assim, como a obra mais bem acabada e madura da carreira do cineasta até hoje, um exercício magnífico e impiedoso de cinema que tem a mesma aura exuberante e intrigante dos velhos filmes de mistério de Alfred Hitchcock.
Birdy, também conhecida como Jasmine Van de Bogaerde, não tem a arte no sangue apenas por ser filha de uma exímia pianista. Quem é cinéfilo, já percebe algo no sobrenome: a garota é sobrinha-neta do já falecido ator Dirk Bogarde, de clássicos absolutos como “Morte em Veneza” e de filmes ousados e obscuros como o “O Porteiro da Noite”. Talvez daí venha a melancolia e a imensa capacidade emotiva do vocal da garota. Graças à este dom, Jasmine pode vestir uma cuidadosa seleção de faixas pinçadas do rock indie e alternativo dos últimos dez ou quinze anos – contando para tanto com a ajuda de um punhado de produtores musicais experientes da atualidade – em uma abordagem sensível que alterna delicadeza e exuberância.
Como não poderia deixar de ser, já que foram imenso sucesso na internet e até mesmo utilizadas como trilha de seriados de TV, estão presentes no debut os singles que a trouxeram ao conhecimento do público na web, como “Skinny Love”, onde apresentou seu piano triste enquanto exibia toda a extensão do seu vocal doce e macio, “Shelter”, que além do piano tão dramático e amargurado quanto o esplêndido vocal de Birdy traz sutis sintetizações etéreas, e “People Help The People”, fabulosa versão que com bateria, guitarra, baixo e violoncelo acompanhando o piano mostrou que a menina se sai tão bem dividindo seu brilho com uma banda quanto na solidão do estúdio com seu piano. Por falar na banda, na abertura do disco, quando é removida de “1901” toda a verve brejeira e lo-fi das guitarras da versão original da banda Phoenix em detrimento de um andamento lento comandado por piano e bateria que dá direito à quem ouve a música de realmente apreciar toda sua beleza, percebe-se ali alguns vapores de Fiona Apple. A impressão não é um equívoco condicionado pelas várias semelhanças físicas, artísticas e de situação entre as duas mulheres: um dos músicos convidados, e que surge nesta primeira faixa, é o baterista Matt Chamberlain, que já trabalhou com a reclusa e idiossincrática cantora e compositora americana. Mas mesmo com uma produção de ponta e produtores consagrados, Birdy consegue instaurar em sua música ares de artista independente, como em “White Winter Hymnal”, do Fleet Foxes: o pulso mecanizado da percussão sob os acordes singelos no piano e as várias camadas de vocal sobreposto de Birdy emulam parte da atmosfera algo artesanal da versão da banda, mas investe-se aqui em uma maior simplicidade melódica, tão cativante quanto a original. Nas faixas “Young Blood” e “Terrible Love” há um polimento melódico ainda mais vigoroso: na primeira, saem de cena as guitarras e apazigua-se a multitude de sintetizações, características da versão feita pelo The Naked and Famous, para que a melodia reverbere em um todo mais homogêneo onde acordes de guitarra e teclados cintilam e vibram sobre uma programação mais leve, tudo de modo a não atrapalhar a interpretação equilibrada da britânica; na segunda, é mantido o crescendo melódico, mas ao invés das guitarras e o vocal blasé da banda The National que roubam tudo o que podem de Joy Division e The Smiths, há a voz incomparavalmente mais emotiva de Birdy, seu piano singelo e uma orquestração de cordas que laceia o esplendor sentimental desta versão.
Mas está completamente equivocado quem possa pensar que começar a carreira com um disco de covers é uma decisão que revela a opção pelo caminho mais fácil. Com a ajuda de uma boa trupe de produção e um afiado sentido melódico consegue-se aperfeiçoar muito músicas que não aproveitavam todo o seu potencial melódico, mas o desafio torna-se bem mais complexo e ousado quando se tenta reconstruir em uma nova versão o mesmo impacto de uma canção que já exibia todo o fulgor de sua melodia, exatamente o caso de “Comforting Sounds”, fabulosa já na sua primeira versão dos dinamarqueses do Mew. Como refazer toda a grandeza resplandecente do solo melódico das guitarras originais sem perder a singularidade do elemento emocional da primeira versão? Parece mesmo uma tarefa ingrata. Contudo, a menina e sua equipe, aqui lideradas pelo gabaritado produtor Rich Costey, sucedem e muito bem na missão: com Birdy derramando toda a alma nos vocais da canção e deixando espaço para que synths de orquestração de cordas refaçam o espetacular efeito maciço das guitarras na explosão melódica original, “Comforting Sounds” acaba sendo um dos covers mais belos do disco, imensamente emocionante e capaz mesmo de trazer lágrimas aos olhos. E ainda sobra ânimo e força para um delicado registro nos teclados da meiga “Farewell and Goodnight”, originalmente dos americanos do The Smashing Pumpkins, e até mesmo um aperitivo do que virão a ser composições originais desta garota-prodígio britânica, com a angustiada balada ao piano “Without a Word”. É uma estréia muito promissora, não apenas porque a garota de 16 anos prova que ainda surgem alguns artistas jovens que podem demonstrar mais maturidade e sofisticação do que cantores estreantes menos novos ou mesmo veteranos do rock e pop, mas pirincipalmente porque a menina revelou-se uma cantora segura de sua capacidade e com uma identidade que brota já com considerável consistência artística – mesmo que suas composições não frutifiquem futuramente em algo realmente proveitoso, fica a certeza de que na pior das hipóteses teremos uma interpréte das mais vigorosas da música da atualidade.
Fãs da musa do experimentalismo pop francofônico, celebrem: saiu hoje Ilo Veyou, o novo disco da francesa Camille Dalmais, mais conhecida apenas por Camille. Depois de estrear com um belo disco pop, Les Sac des Filles, de ganhar os olhos do público mais antenado e da crítica especializada com o impressionante Le Fil e se aventurar em versos em inglês, em percussionismo corporal e no pop mais escrachado em Music Hole, o que se deve esperar de seu quarto trabalho? A própria Camille, em entrevista ao jornal The Guardian, responde que buscou uma maior simplicidade sonora, com elementos mais acústicos servindo como base à sua voz. Deste modo, Ilo Veyou volta a priorizar, como aconteceu no brilhante Le Fil, a clareza, destreza e versatilidade do vocal da artista francesa. E assim começa o novo disco como terminou o seu famoso segundo trabalho, com a captação em ambiente natural da voz da cantora em uma repetição de frases com sucessiva incorporação de palavras que ela, claro, não resiste em rapidamente transformar em uma pequena música chamada “Aujourd’hui”. E seguindo o preceito de simplicidade assumido como meta para o álbum, temos o primeiro single, “L’étourderie”, trazendo violão e violinos em harmonias simples suaves que ondulam em adornamento ao vocal doce da cantora francesa. O artifício de captar o vocal da cantora fora do estúdio, em take único em ambientes naturais, é utilizado ainda em outras faixas e se em “Bubble Lady” serve apenas para a cantora farta-se livremente com jogo de aliteração ao cantar com variações silábicas com a letra “B” sobre um sutil beatbox de apoio, o recurso pode produzir tanto flagras inesperados – como na canção “Pleasure”, que se escutada com a devida atenção, fica fácil flagar a breve participação inesperada, ao fundo do vocal e da batida seca, provavelmente produzida no próprio corpo da cantora, de uma espontânea buzina de carro -, quanto momentos de uma beleza esplendorosa – como em “Tout Dit”, que pela sua tecitura simples a cappella deixa transparecer os ruídos mais mínimos do ambiente onde foi gravada, como o cantar de grilos e pássaros.
À exceção destas faixas, Camille limita-se ao estúdio para a produção de suas composições que não escaparam à sua tradição lúdica, como é belo exemplo “Allez Allez Allez”: introduzida com violinos em arranjo sublime para fazer frente aos múltiplos vocais de Camille, em tom altivo e determinado, bradando o mote da canção sobre violão, percussão, contrabaixo e violinos que adentram aos poucos a melodia, Camille insere um entreato onde, usando os vários vocais, conversa consigo mesma. A brincadeira segue à frente em “Mars Is No Fun”, de melodia feita de percussão de palmas, contrabaixo volumoso e algumas iluminuras em piano e violinos, quando a cantora repete nas letras o frescor brincalhão da música ao trazer impressões cômicas de como a vida no nosso planeta vizinho é chata e limitada por suas óbvias características atmosféricas, em “Ilo Veyou”, onde a cantora exibe com sua habitual competência as várias gradações de seu vocal, alternando graves e agudos sobre violinos em pizzicato, e em “Message”, que o que tem de pequena em duração – pouco mais de 40 segundos – transborda em meiguice com seu piano que simula toda a ternura daquelas antigas caixinhas de música de bailarina. Contudo, os momentos mais divertidos estão mesmo nas canções “My Man Is Married But Not To Me”, onde sobre piano e violinos de harmonias virtuosas, a cantora desfila trejeito vocais ao lamentar sobre o tema, brincando com o estereótipo romântico mais batido ao afirmar “bad of course, so he wil come and pick me up on his horse, white horse”, e em “La France”, onde Camille emula a tradição da chanson française de Edith Piaf e tantas outros monumentos francesces para, depois de apontar a excelência de outras nações, declarar no refrão, sem medo de soar polêmica e angariar todo o ódio de seus conterrâneos, “la France, la France…des photocopies”.
Mas se Camille preservou toda sua galhofa, ela não abandonou igualmente a sua faceta mais melancólia, capaz de produzir composições extremamente emocionantes. Enquanto a faixa “Wet Boy”, cantada em inglês fazendo uso da famosa dupla voz e violão, desfila uma doçura e amargor sutis, “She Was” cala fundo com a beleza imensurável de seu crescendo melódico, onde violinos em pulso ondulado sobre violão quase surdo acompanham a avolumamento do vocal da cantora, que vai ampliando o desatar sofrido dos versos em uma intepretação esplêndida que faz referência ao nascimento recente de seu primeiro filho: “sometimes I wonder/ GO!/ if my child/ GO!/ will have yes/ GO!/ go away, go away/ to see through me/ GO!/ when I die/ GO! and born again! GO!/ go away, go away, go away!”. Assim, Camille, ao deixar de ter como meta primeira a ambição de tornar-se popular entre o público de língua inglesa – particularmente o americano-, fato que ocasionou os excessos que com o tempo fizeram o seu último álbum parecer um pouco forçado e um tantinho embaçado, foca-se no explorar do que tem de melhor: o fulgor de sua emoção e sensibilidade musical.
Segundo consta, Alice Gold já hospedou-se em um castelo para ensinar inglês à um príncipe de Luxemburgo e ganhou um trailer em um jogo de pôquer, o qual utilizou para cruzar a famosa Rota 66 que atravessa boa parte dos Estados Unidos. Talvez essas coisas nem sejam verdade, mas a referência à lendária estrada americana faz sentido: ela está para as bandas e cantores de pop, e principalmente rock, como Santiago de Compostela está para os espiritualizados – entre outras coisas, é uma jornada necessária para para encontrar a si próprio em um novo reinício. E no caso da artista britânica, estes foram os eventos que prepararam o terreno para que pudesse concretizar sua estréia com o disco Seven Rainbows – e as aventuras devem realmente ter tido efeito, já que a menina chega no seu debut com a segurança própria de uma veterana. Recheando o disco com uma fusão impressionante de composições de base pop infiltradas com intensas vibrações rockeiras dos anos 60, Alice demonstra que sabe bem o que está fazendo. A canção abertura do álbum, “Seasons Change”, não deixa dúvidas quanto a isso: em meio à uma pegada pop completamente narcotizante, a garota mostra como aprecia soltar a sua bela e potente voz, sem qualquer medo, com a categoria de uma cantora soul. Mas a verve rock é mesmo seu maior charme, e aqui se tem a prova de que sua declaração dada ao jornal The Guardian de que o mundo precisa de mais garotas tocando guitarras não foi apenas para fazer média de rockstar: já na segunda faixa, “Runaway Love”, a britânica põe em prática toda sua paixão por riffs de guitarra eletrizantes e linhas de baixo robustas. Caudalosos, os toques nos instrumentos dão um pulso irresistível à canção, potencializando a sutil cadência dançante da bateria e encorpando a sua sequência final em pleno orgasmo pop/rock – se essa música ainda não foi “vítima” de algum seriado ou filme, me supreendo muito: é um single poderosíssimo. Pouco à frente, a obsessão da artista britânica em usar guitarras como base de suas melodias segue firme e forte na introdução de “How Long Can These Streets Be Empty”, feita de um fluxo denso de acordes que vão sendo reforçados por riffs menos polidos e mais improvisados, em parceira à um baixo marcante e uma bateria manejada com muita solidez. Mais gingada que estas duas faixas, só a hiper-insunuante “Orbiter”, cuja melodia, com base em uma trilha transbordante de guitarra atravessada por riffs mais agudos e faíscantes sobre uma bateria ligeira e consistente e um vocal incandescente, desperta uma vontade tresloucada de dançar desavergonhadamente, jogando o corpo inteiro ao ritmo da melodia. Menos frenéticas, “And You’ll Be There”, com melodia malemolente no conjunto bateria, baixo e guitarra e “Cry Cry Cry”, com beat cadenciado de percussão e palmas sobre o qual a guitarra refestela-sem em acordes ondulantes, levemente sensuais, dão um respiro na agitação e na sede por riffs mais crispantes. E contrariando o que parece ser uma prática entre cantoras do pop/rock, “Sadness Is Coming” é a única faixa do disco que mais se aproxima de uma balada, e para tanto, acordes no piano e no xilofone inserem a delicadeza necessária à melodia. Muito apropriadamente, Alice fecha sua estréia com “The End Of The World”, faixa que incorpora uma pegada soul com vocais e backing múltiplos e uma harmonia que não foge do tradicional artifício do pop/rock de encorpar a melodia no refrão da canção – uma escolha bastante previsível para encerrar um álbum de estréia, mas convenhamos: para a estréia de uma artista do pop/rock, seara musical que anda tomada por gente desprovida de talento (isso quando também não são carentes do instrumental mais básico de um cantor, sua voz) a garota já fez muito coisa.
Depois de um disco que esbaldou-se no oceano do pop clássico, no seu novo álbum, The Brothel, a cantora norueguesa Susanne Sundfør emergiu destas águas calmas e lançou-se às alturas na atmosfera artística, abraçando de modo esplêndido sonoridade mais densa ao introduzir tecituras eletrônicas aplicadas como elementos percussivos ou de adornamento melódico em suas composições baseadas em pianos e órgãos. As canções que nascem desta operação mais ambiciosa são enormemente luxuosas, épicas e sombrias, como a faixa-título que abre o disco com uma delicada harmonia que tintila nas teclas do orgão Rhodes enquanto a cantora embebe a melodia na tristeza de sua voz angelical e derrama ao final uma miríade de sintetizações orquestrais, operando na canção uma imensa aura sacra para sonorizar os versos tristes sobre homens e mulheres perdidos e infelizes no mundo do afeto comprado pelo dinheiro. Em “Lilith”, a faixa seguinte, a vertente elétrica de sintetizações que vai inundando os ouvidos quebra o efeito etéreo da canção de abertura, mas na sequência harmônica final a cantora encerra a tempestade eletrônica de súbito em detrimento de cintilações aquosas e toques leves em um violão. Em “Black Widow”, os doces vocais múltiplos de Susanne anunciam o breve solo elegante de piano que antecede a reversão da melodia, onde vocalizações distantes e harmonias no órgão expandem-se formando uma espécie de marcha fúnebre circense. Orquestrações rascantes de cordas abrem a faixa seguinte, “It’s All Gone Tomorrow”, e logo juntam-se cúmplices à uma base eletrônica sincopada em uma parceira que acaba em um dissonante e cacofônico samba, mas quem não desiste da faixa depois disso descobre que Susanne logo consegue encontrar o caminho quase perdido, e a faixa então se apruma incrivelmente a partir da metade da canção com a entrada do belo refrão e de um maior polimento da enorme massa sonora. Talvez sabendo que chegou perto de cometer um equívoco, a cantora norueguesa capricha na faixa seguinte, “Knight of Noir”, incorporando em seu vocal todo peso do romance narrado nas letras e sonorizado por uma melodia dramática e grandiosa, com piano e percussão de toques espaçados e sombrios, plenos de suspense, e uma reversão esplêndida e gloriosa, onde a instrumentação acelera e encorpa-se quase num tom marcial. Mais à frente, para nosso deleite, a garota volta a aliar com destreza impressionante a delicadeza do piano e de algumas sintetizações à uma base eletrônica percussiva em um pulso ligeiro e nervoso novamente assaltado por uma reversão melódica em “O Master”. Antes disso, porém, temos duas faixas de diferentes atmosferas: primeiro a tecitura complexa de “Turkish Delight”, onde sintetizações e cintilações pulsam e se enredam cautelosamente enquanto são banhadas por uma orquestração de cordas mergulhada em orientalismo, e em seguida a melodia instrumental mais serena, mas não por isso menos bela, de “As I Walked Out One Evening”, com seu órgão e sintetizações ondulantes, sutilmente metálicas, que lembram a produção de Marius De Vries para Björk em Homogenic. “Lullaby”, penúltima música do disco que apesar de ser iniciada com sutis harmonias no teclado, perde logo este caráter de canção de ninar para ganhar um certo teor technopop dos anos 90 devido ao fluxo de programação borbulhante entornado sobre a melodia. “Father Father”, onde uma garota despede-se com pesar de seu pai, encerra o disco com a cantora e compositora dedilhando graciosamente harmonias profundamente melancólicas no teclado enquanto desmancha-se em emoção no vocal impregnado de sofrimento. Poderia afirmar que a faixa é o ápice do disco não fosse ele todo um registro musical impressionante onde a cantora, com apenas 25 anos, expõe todo o seu potencial como artista tanto por falar de amor, dor, angústia e pesar com vigor e ternura quanto por definir uma identidade sonora coesa, ao mesmo tempo sombria e serena – motivo mais do que suficiente pra acompanhar de perto a carreira da garota.
No dia do seu luxuoso casamento, realizado no castelo do marido de sua irmã Claire, Justine pressente que a Terra perecerá em uma colisão dentro de pouco tempo com um imenso planeta chamado Melancolia.
A primeira impressão que se tem de “Melancolia”, minutos após tê-lo assistido, é que, assim como aconteceu em “Anticristo”, Lars Von Trier não esmerou-se muito na trama, já que pouca coisa de fato acontece, e assim concentrou todos os seus esforços em alimentar uma vez mais suas obsessões estéticas. Mas analisando com mais cuidado, observa-se que apesar de partilhar alguns “cacoetes” artísticos com o filme anterior, “Melancolia” é um trabalho no qual o diretor dinamarquês, ainda bem, recuperou boa parte de sua força e sensatez artística, tanto no que se refere à estética quanto ao seu conteúdo.
No que tange à primeira instância, visualmente “Melancolia” é um trabalho sóbrio e equilibrado. Ao contrário do filme anterior, estilizado ao extremo pela utilização constante de diferentes combinações técnicas, fossem elas produto da filmagem, fotografia ou edição, desta vez o diretor dinamarquês decidiu adotar um estilo mais sóbrio e consistente: à exceção do longo prólogo ao som do prelúdio de “Tristão e Isolda”, onde Trier despejou todo o seu ardor estético, o restante do filme sustenta-se sobre uma estética requintada, simples e direta, onde apenas dois elementos acabam se sobressaindo por sua utilização um pouco mais ostensiva como artifícios da narrativa: o já citado prelúdio da ópera de Wagner, que em meio à aridez sonora pulsa como o prenúncio da fatalidade, e a imagem imponente e traiçoeiramente plácida do gigantesco planeta Melancholia, que ganha cada vez mais peso na segunda parte do filme.
Mas é na instância primeira de qualquer filme, o roteiro, que residem as grandes virtudes do novo longa-metragem de Lars Von Trier. Montando a trama sobre uma estrutura clara e sólida – um prelúdio que resume os eventos da história, mais dois atos, cada um centrado em um protagonista e um evento (Justine e sua festa de casamento e Claire e o advento do fim do mundo) -, o diretor e roteirista vai desenvolvendo com calma os personagens – é sem pressa que, por exemplo, compreende-se a razão do comportamento um tanto bipolar de Justine na festa do seu matrimônio, quando alternou momentos de sincera alegria com intenso desgosto pelo evento que a cercava -, e explorando vagarosamente a trama tanto para atingir sem resvalos seus propósitos, quanto para não obscurecer o peso do seu próprio desfecho, que por ter sido revelado ao público nos seus primeiros minutos acaba, ironicamente, por despertar ainda maior ansiedade. Assim, retomando total poder sobre seu característico talento em devassar o âmago dos seus personagens (contando pra isso, claro, com o trabalho soberbo de todo o elenco, principalmente das duas protagonistas) e amarrando este processo à própria mecânica de desenvolvimento da trama, o diretor dinamarquês faz da primeira parte do filme tanto o fundamento psicológico que explica o modo como os personagens vão reagir à iminência do fim do mundo quanto uma analogia à própria hecatombe ao mostrar o quão sem sentido são os ritos e formalidades que infestam nossa vida e o quão cínicas e demagógicas são as relações humanas e a vida de aparência construída pela maioria. Deste modo, a festa de casamento de Justine é metaforicamente o próprio fim do mundo, e não metaforicamente a ilustração clara e absoluta da declaração dada pela personagem à sua irmã na derradeira segunda parte do filme: “The Earth is evil. We don’t need to grieve for it”. E não há mesmo porquê sofrer: Lars Von Trier desintegra a Terra e toda a vida existente no universo em um impiedoso exercício de niilismo e pessimismo, mas é ao fazer tudo isso que se redime, com folga, dos excessos de suas últimas obras – ironia tão ao gosto do diretor que, não fosse pura arbitrariedade, poderia pensar ser absolutamente proposital.
Jack, executivo de meia idade de uma grande companhia, enfrenta uma crise existencial e mergulha em recordações de grande parte de sua infância ao lado dos dois irmãos mais novos, seu pai, um engenheiro militar ao mesmo tempo rígido e afetuoso, e sua mãe, doce, alegre e compreensiva, revivendo inclusive a dor da perda do irmão do meio, quando este tinha cerca de 18 anos de idade.
Ao invés de uma narrativa convencional e linear com um roteiro palpável, Terrence Malick procura retratar em seu mais novo filme com contornos autobiográficos, “A Árvore da Vida”, como imagina ser a experiência de recordações da infância através da utilização de sequências de imagens, sensações, sons e emoções deste período, o que resulta em um retrato sensorial da infância, de forma absolutamente não-narrativa, tudo ainda entrecortado ou correndo paralelamente à uma ilustração sobre o surgimento do universo e da vida. Os críticos e o público mais impressionados com o longa-metragem, muitos destes declarando-se profundamente tocados e emocionados por ele, o definem como uma “poesia visual”, e em sua grande maioria utilizam este termo como defesa de sua qualidade, o que, muito proveitosamente, também lhes garante o direito de afirmar que os que não se impressionaram e não apreciaram o filme certamente não conseguiram atingir e compreender sua profundidade, atitude totalmente análoga à de uma experiência esotérica/mística/religiosa – não me surpreendo com tamanha tolice: esta é uma tendência bastante comum entre fãs que nutrem paixão cega por algo que julgam profundo (e que, muitas vezes, assim o vêem porque consideram estar a obra além de seu entendimento e compreensão).
De fato, nem se discute que “A Árvore da Vida” é poesia visual. Porém, dizer isso é tão somente descrever sua essência e estrutura, e não um argumento para defender sua qualidade, uma vez que poesia, como qualquer outra coisa existente, pode ser boa ou ruim – não é por ser poesia que necessariamente vai ser boa. É verdade que a fotografia, cenografia e ambientação do filme são estupendas, mas elas tornam-se entediantes com sua brancura cristalina, e higienismo inexpugnáveis; claro que a seleção de peças clássicas que servem de trilha sonora é fantástica, mas a sua utilização insistente, quase ininterrupta, seus contornos etéreos/sacros e principalmente sua aplicação na montagem a fazem um chavão cinematrográfico dos mais batidos, já que praticamente qualquer coisa, mesmo a mais banal e ordinária, não acontece sem ser acompanhada por um “batismo” sonoro de esplendor celestial; a edição, em grande parte feita de sequências dentro da casa de um minuto ou menos, é interessante e peculiar, porém acaba cansando logo com este amontoamento gigantesco de pequenos fragmentos de cenas.
Mas se sua análise isolada revela sua problemática, em conjunto os elementos não se revelam mais felizes: o caráter poético, que resulta desta união e do olhar que o organiza (de Malick, obviamente), é o mesmo que encontramos nos clichês mais caros ao mundo da publicidade, com toda a sua carga cafona e simplista – imagine uma peça publicitária de ano novo de uma mega-corporação bancária e você já vai ter uma idéia muitíssimo aproximada da aura poética de “A Árvore da Vida” (isso sem falar na novelesca sequência final com todo o elenco e figurantes, que ninguém ousou falar que é de gosto duvidoso só porque se trata de Malick). E mesmo que se façam interpretações profundas de sua trama não-narrativa (desnecessário chegar a tanto, a compreensão do que Malick pretendia com o filme está longe de ser difícil, nem foi esta sua intenção), estas não lhe removem seus defeitos e equívocos – a bem da verdade, apenas os ressaltam.
Deste modo, afora os requintes técnicos e o bom desempenho dos atores – que estão muito bem, é verdade, mas suas atuações estão o tempo todos submersas pelo imenso peso dos elementos que compõe o filme -, restaria a ousadia de Terrence Malick em ter produzido um longa-metragem pouco convencional, mas mesmo isto é discutível. A colossal empreitada do cineasta americano não é tão ousada quanto aparenta ser: o documentário experimental “Koyaanisqatsi”, colaboração do diretor Godfrey Reggio com o espetacular compositor Philip Glass que influencia até hoje a produção cultural audiovisual contemporânea, trilhou caminho semelhante bem antes deste filme – obviamente que ambas são películas bastante diversas, mas a essência poética não-narrativa e a reflexão sobre a vida, o universo/mundo, a humanidade e a espiritualidade são essencialmente as mesmas – com o agravo de que o filme de Reggio é impecavelmente esplêndido em todos os seus aspectos.
Ao fim, penso que apesar e justamente por conta de sua irrefreável beleza imponente, “A Árvore da Vida” acaba subjugando às intenções elevadas de seu conteúdo à ela, o que, muito ironicamente, subverte todo o requinte de seu conjunto sonoro e visual romântico em algo um tanto ordinário e vulgar e consequentemente o seu conteúdo solene em um conjunto de reflexões sobre a perda, o perdão e a transcendência da existência que não difere muito da falácia espiritual e de auto-ajuda que infecta as editoras literárias do mundo inteiro. É provável – e admito – que o diretor tenha alcançado e realizado aqui muito do que pretendia, os méritos técnicos são inquiestionáveis,porém, a relevância, a mais nobre da pretensões que se pode alimentar, não consegue sobreviver à longa jornada de quase duas horas e meia que vai desde a origem do universo até a redenção e iluminação humana em “A Árvore da Vida”.
BÔNUS: apesar de ter sido lançada oficialmente a trilha sonora do filme, composta por Alexandre Desplat , pouco desta música em grande parte contemplativa e serena é de fato utilizada no filme, já que é uma seleção de peças clássicas compostas por Taverner, Preisner (genial compositor parceiro de trabalho do inesquecível cineasta polonês Kieslowski), Respighi, Holst, Smetana, Górecki, Couperin, Berlioz e Patrick Cassidy que são utilizadas em grande parte de “A Árvore da Vida” e que de fato ficam associadas na memória devido à sua imensa beleza e imponência. Como disse na resenha acima, apesar do modo como foi utilizada ser justamente um dos grandes problemas do filme de Malick, seria estúpido não admitir que a seleção é das mais belas e primorosas. Não se sabe se Malick vai ou não liberar a coletânea de peças eruditas oficialmente, mas mesmo que não o faça, as boas almas da internet já tomaram para si a tarefa: aqui está, então, tanto a trilha oficialmente lançada quanto a compilação não-oficial com as composições clássicas dos mestres da música acima citados. Bom proveito!