Desde a infância demonstrando união intensa, os meio-irmãos Francisco e Thomás, acabam na vida adulta iniciando um relacionamento amoroso.
O novo filme de Aluízio Abranches, que já tinha ganhado um texto de prévia aqui no seteventos.org, angariou popularidade no reino alternativo da internet por conta de vídeos de divulgação que adiantaram boa parte do enredo controverso e principalmente por demonstrar que os dois protagonistas, que interpretam meio-irmãos, se entregam com razoável ousadia e considerável naturalidade às intimidades de suas cenas de romance que demonstram contato físico sem muito receio. Porém, uma desconfiança surgiu com a divulgação destes vídeos: seria a história do filme tão vigorosa quanto supostamente o são suas cenas de romance? Esta dúvida, descobri então, tinha sua razão de ser.
Convenhamos que o senso comum diria a qualquer pessoa que um filme que se concentra em uma relação incestuosa que vai ganhando contornos visíveis desde tenra idade diante dos olhos de pais e amigos vai indubitavelmente retratar os imensos e inevitáveis dilemas morais que tal fato desencadearia. No filme de Abranches o pai de um dos garotos, personagem de Fábio Assunção, e principalmente a mãe de ambos, personagem de Júlia Lemmertz, após notar a incomum proximidade entre os dois, até ensaiam questionar-se sobre como lidar com o fato, mas de forma breve e tímida, logo omitindo-se de tomar qualquer atitude baseados no pretexto de que o livre arbítrio é direito de todos em qualquer situação. O resultado final desta postura sem censura ou qualquer esclarecimento é bastante previsível: por uma questão de lógica, isso é quase como um apoio velado que delega ao tempo o fortalecimento do sentimento que um tem pelo outro. Portanto, não surpreende que já na vida adulta, quando a relação já está consumada, amigos de ambos encarem isso com a maior tranquilidade, já que o próprio pai de Thomás e padrasto de Francisco trata a relação amorosa dos dois como uma relação qualquer entre dois amantes. É sabido, até porque o diretor afirmou em todas as oportunidade possíveis, que o filme de fato foi pensado já com esta idéia em mente – a de remover qualquer menção à conflitos de ordem moral sobre a relação dos dois, tanto no que tange a esta ser uma relação homossexual quanto por ser uma relação incestuosa. Essa é a razão do diretor ter estirpado a adolescência dos dois garotos do enredo de seu longa-metragem, livrando-se até mesmo de fazer qualquer menção à esta fase da vida de Francisco e Thomás: a idade, que já é naturalmente tumultuada, não teria como ser ilustrada sem a inserção de conturbações que a rigor ocorreriam com o florescer mais concreto dos desejos dos dois irmãos. Assim, o maior problema causado por esse pulo temporal da infância para a vida adulta não é simplesmente a perda de densidade e fundamentação para a história de amor entre eles, como afirmam outras resenhas publicadas sobre o filme, mas derivado à esta e ainda pior, a patente abordagem “higienizante” do diretor com o enredo, o que leva à uma incomensurável falta de realismo no seu desenrolar. Além disso, o artifício adotado por Abranches também acaba por trabalhar contra a natureza própria de um drama cinematográfico, afastando a presença de conflitos que sejam suficientemente relevantes para engendrar a dinâmica natural do interesse do espectador pelo filme, relegando à dramas menores, um tanto tolos e até mesmo razoavelmente incongruentes, a partir da metade final do filme, o serviço de injetar algum conflito nesse controverso e nada ortodoxo mar de rosas que é a relação entre os dois irmãos.
Os outros componentes do filme, que já não seriam suficientes para justificar alguma menção positiva em vista do problema crônico que nasce a partir da abordagem do diretor com o enredo da história, só entornam ainda mais o caldo. A fotografia reforça de forma material o higienismo do roteiro, a trilha sonora tenta injetar emoção e delicadeza, mas a mim soa quase completamente cacofônica, e o elenco, incluindo os dois atores que protagonizam o filme, João Gabriel Vasconcellos e Rafael Cardoso, a despeito de sua desenvoltura nas cenas de romance, surgem absolutamente apagados em praticamente qualquer cena que estejam inseridos. Apagado, aliás, é o termo que define com exatidão este filme de Aluízio Abranches, tão desprovido de ânimo que é para até mesmo ser qualificado como ruim, o que motivou os internautas e blogueiros a rotularem a película como uma espécie de “comercial gay de margarina”. Quem gostou, ao contrário, enxerga em “Do Começo ao Fim” o “Brokeback Mountain” brasileiro. Eu, mais uma vez, tenho que confessar que os críticos não rotularam adequadamente o filme e os adoradores estão enormemente equivocados. Com todo o excesso de cautela que contaminou a concepção e produção do filme, a meu ver ele está mais para uma fábula crocante, com recheio picante e encoberto com suave polêmica, ao invés de um comercial gay de margarina. Quanto ao elogio, ao contrário deste filme aqui, o longa-metragem de Ang Lee é enormemente realista. Pois é, mesmo não gostando de listas de “Top” e “Best Of”, estou apostando que “Avatar”, mesmo com toda a pirotecnia de milhões de dólares e com dez longos anos de produção, deve logo perder o título de maior filme de fantasia da década para “Do Começo ao Fim”.
Tag: aluizio abranches
Ao ter sido informado do vazamento na internet do promo de cerca de 4 minutos do seu filme “Do Começo ao Fim”, que nem teve finalizada sua pós-produção e sequer tem qualquer data de lançamento confirmada, o diretor Aluízio Abranches pensou imediatamente em tomar medidas para retirá-lo do ar. Mas, ao verificar que em pouquíssimo tempo o vídeo se multiplicava em mais e mais páginas no YouTube o diretor se deu conta do óbvio – não há como lutar contra o poder de compartilhamento da rede – e entendeu que até poderia sair ganhando com o episódio. Primeiro, porque o vídeo está servindo para divulgação do filme, provocando o famoso boca-a-boca que atiça a curiosidade do público. Segundo, porque a discussão razoavelmente acalorada nas páginas que detém os vídeos do filme já lhe serve de prévia para que ele tenha uma idéia antecipada da inevitável polêmica que seu longa-metragem vai gerar quando do seu lançamento. Polêmica esta que só não vai ganhar espaço em veículos mais tradicionais, famosos e populares da imprensa brasileira por conta do teor de sua história: um romance entre dois rapazes que são irmãos – na verdade, meio-irmãos, pois segundo a sinopse do roteiro eles são filhos apenas da mesma mãe, interpretada por Julia Lemmertz, atriz cara ao diretor Aluízio.
Sim, o filme fala declaradamente de um amor incestuoso, que nasce na infância como uma ligação de imensa proximidade, apoio e carinho entre os irmãos Francisco e Tomás e se concretiza como relação amorosa na vida adulta e, portanto, não há como não dizer que o diretor pegou um pouco pesado – palavras de Lucas Cotrim, o próprio ator que interpreta Francisco com 11 anos de idade. Claro que a idéia enormemente controversa de ousar lidar com dilemas morais tão sedimentados gerou dificuldades para achar financiamento adicional, além daquele que o diretor já dispunha. Idéias para suavizar ou subverter a essência da história não faltaram: houve quem sugerisse trocar os irmãos por primos e até quem dissesse que topava financiar se Abranches colocasse duas irmãs ao invés de irmãos (o que não é de causar surpresa, visto que parte da idéia tem relação com o fetiche heterossexual masculino mais emblemático, o do lesbianismo, que recebe tratamento mais “naturalizante” do que aquele arquitetado por Abranches), mas o diretor brasileiro foi insistente e conseguiu ajuda financeira de dois empresários que, obviamente, exigiram total anonimato.
No entanto, após sentenciar o peso da história da qual participa, o garoto Lucas procurou emendar um elogio, afirmando que a história do filme é “muito maneira”. O elogio deve se referir, no caso, ao que aparenta ser a cautela do diretor na abordagem do tema: segundo declarações em entrevistas, Abranches procurou cercar-se de cuidados com o tratamento da história – cuidados que incluíram uma visita ao analista após o primeiro dia de filmagem – durante os quatro anos de gestação da idéia para que tivesse a certeza de lidar bem com ela, livrando-a de quaisquer excessos, particularmente os advindos de sentimentos de culpa. E, provavelmente, este é o elemento mais intrigante adicionado a história: o modo como a família dois dois irmãos reage ao perceber, na infância, a proximidade excessiva de ambos. A surpresa e o choque existem, mas a plácida compreensão complacente parece acompanhar toda a experiência da percepção da relação dos dois meninos e aparentemente suplanta qualquer possibilidade de recriminação. E por essa razão é que o promo do longa-metragem adianta que a relação entre os dois irmãos adultos se realiza sem muitos impedimentos de ordem moral.
Por sinal, a forma tão explícita como Abranches ilustra esta relação, colocando os dois atores escolhidos – o estonteante moreno João Gabriel de Vasconcellos como Francisco e o belo loiro Rafael Cardoso como Thomás – abusando de trocas de carícias e de demonstrações de paixão escancarada, configura sua abordagem como duplamente audaciosa: primeiro, por que talvez esse seja o longa-metragem brasileiro que melhor ilustra até hoje, sem pudores e com toda franqueza, uma relação entre dois homens; segundo, por expor a gênese, florescimento e consumação de uma relação incestuosa. E o diretor explora tanto esta atmosfera de erotismo entre os atores que preparou uma espécie de ensaio com os dois rapazes só de cueca e repleto de beijos apaixonados, chamegos e algumas sequências de “pega” bem ousadas para adiantar o retrato, por ele pintado, da intimidade dos dois personagens – semelhanças deste ensaio com teasers das produtoras do pornô gayforpay-me-engana-que-eu-gosto não me parecem só uma coincidência (a única diferença é a canção escolhida, que deixa o “ensaio” um tanto cafona…a música que serve de trilha para o promo, que segue a escola de Michael Nyman e Philip Glass, é radicalmente mais bela e interessante).
É bom lembrar que estas são apenas impressões apreendidas de um curta que resume o longa-metragem em 4 minutos e de informações divulgadas em artigos e entrevistas. As coisas podem, na verdade, ser consideravelmente diferentes na integralidade do filme de Abranches. Porém, mesmo que tudo não seja exatamente tão polêmico quanto parece – o que acho difícil de ser verdade -, se um punhado de cenas já gera tamanha reflexão e ocasiona discussões intermitentes por onde quer que elas passem, não é difícil prever que, ao menos, “Do Começo ao Fim” tem quase garantido o sucesso que fará na esfera cult do cinema – e não apenas do cinema brasileiro.
Para assistir ou fazer download do promo/trailer ou do ensaio com os dois atores, use os links abaixo.
(Agradeço ao sempre atento Pelvini pela dica do promo do filme.)
“Do Começo ao Fim” – promo: Youtube (assista) – download
“ensaio” com os atores João Gabriel e Rafael Cardoso: Youtube (assista) – download