Há cerca de 15 anos que não se sintoniza uma estação de rádio em qualquer período do dia e da noite sem correr o perigo de expor seus ouvidos à agressão causada pela insuportável mistura de ritmos antes distintos da música negra norte-americana, e que hoje pode ser resumido à um punhado de beats já catalogados featuring moçoilas lançando gritos e “miados” pretensamente sensuais e “manos” que nutrem a ilusão de encarnar a canastrice bad boy ao empostar um vocal que mais se assemelha a um arroto ou por, ao contrário, mimetizar uma voz que, ironicamente, é bem mais frágil e aguda do que a das moças. O conteúdo (?) coincide com a forma, procurando limitar-se a uma ostentação emergente de riqueza ou a enumerar peripécias sexuais do modo mais rasteiro permitido. Pra ajudar a deixar tudo o mais pasteurizado quanto o possível, encarregue um ou no máximo dois sujeitos para produzir os discos de TODOS os contratados do gênero pelas gravadoras e está feito: temos devidamente fabricado metade do catálogo de maior investimento das gravadoras e em média 80% do que estacionou há muitos anos em absolutamente qualquer top ten pelo mundo afora.
Por conta desse massacre sonoro que se mantém onipresente desde meados dos anos 90, fica difícil acreditar que algo de bom possa ser feito dentro destes gêneros musicais. Mas a sueca Jenny Wilson, com a mesma sensibilidade e ironia com as quais tripudiou sobre as agruras do amor e os rituais juvenis em seu disco de estréia, decidiu que essa seria a tarefa para Hardships!, o seu segundo disco.
A princípio isso pode parecer uma idéia que já nasce fracassada por conta dos excessos plantados sem qualquer noção de limite nos ritmos mais em voga da música popular negra norte-americana e que desse modo acabaram sendo fossilizados como suas maiores características. Porém, foi justamente ao manipular ao seu favor as suas excrecências, transformando em beleza e poesia o que na sua origem não passa de sujeira que a compositora conseguiu evocar a graça desejada aos ritmos.
“The Wooden Chair” e “Anchor Made of Gold” são duas das faixas que mais escancaram o poderio de subversão de Jenny ao lidar com o estilo. A primeira adota a rítmica lasciva e dançante dos hits que exploram a sensualidade e a converte em uma música elegante e estudada guiada por um baixo de pulso grave e ornada por clacks, palmas, estalos e tiques percussivos dos mais variados, além claro, de uma linha de vocais impecável; a segunda, com sua melodia entre a balada r&b e o hino soul normalmente resultaria em um single chato e enjoativo, mas trabalhados pelas mãos da cantora sueca os toques de piano e bateria e o cingir dos pratos dão um volume encantável a melodia enquanto os “claps” e backing vocals, tão maltratados pelos americanos, lhe dão um acabamento arrojado.
E são de fato os vocais, tão polidos e reluzentes quanto as jóias de um ourives, que compõe o encanto do musicalidade deste novo disco da artista sueca, como bem prova a música “Hardships” e a curta faixa que lhe faz introdução, “Motherhood”: surgindo em fade in, um coro de vozes em plena sintonia e afinação fascina os ouvidos com uma animada toada de feição gospel sobreposta à um pulsar grave e maciço tão natural que é possivelmente resultado do sapatear em piso de madeira, tudo apenas para abrir espaço para a melodia percussiva e acústica de “Hardships”. Esta apresenta uma música cravejada de cintilantes beats e acordes de piano, violinos e vibrafone com um brilho platinado intenso, mas é o reluzir dourado ofuscante dos vocais ondulantes que dá corpo e sofisticação a harmonia. A balada “We Had Everything” levanta ainda mais os vocais para o primeiro plano, numa composição fabulosa de vozes junto ao cantar esplendoroso de Jenny com o lamuriar deslumbrante de violinos e pianos preenchendo o ar com o aroma doce de sua melodia. Encerrando o disco, “Strings of Grass” sintetiza a experiência de Hardships! com uma música que, assim como o disco, apresenta sinuosidades sonoras rebuscadas que tornam difícil sua classificação, mas que no entanto consegue preservar com tranquilidade nuances suaves ao unir aos vocais piano, sax, flauta e alguma percussão em delicada consonância.
Nem todas as faixas que nascem do flerte da idiossincrasia natural das composições da artista sueca com o soul e o r&b soam atraentes, é verdade, porém os triunfos de Hardships! são suficientemente bons para fazer os poucos insucessos figurarem como meros detalhes. Era de se esperar, uma vez que a moça até se apresentou na capa do disco com a sóbria serenidade de um vestuário à moda Coco Chanel, mas fez questão de mostrar a sua disposição empunhando um belo e amedrontador rifle. Nem era necessário: para dissipar qualquer reminescência que as moças trajadas com o figurino tipicamente Daspu deixaram no r&b, o requinte e a classe de Jenny Wilson, assim como o estranho calor do seu falsetto escandinavo, foram suficientes.
Baixe o disco utilizando o link a seguir e a senha para descompactar os arquivos.
rapidshare.com/files/211836742/wilson_-_hardships.zip
senha: seteventos.org
Deixe um comentárioSe quiser, leia uma outra opinião sobre o mesmo disco no texto escrito pelo Zé.