Capitão Nascimento, após uma operação polêmica no presídio de Bangu I, mas apoiada pela população, acaba ganhando um alto cargo na Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro. É de lá que ele planeja atuar de modo mais efetivo contra o crime da cidade – logo, porém, descobre-se que o oficial não estava tão atento às mudanças na dinâmica do crime na cidade quanto pensava.
No início, a notícia da sequência de “Tropa de Elite” me soou bastante mercenária, derivada que foi do sucesso da primeira instância da história. Certamente que esta deve ter sido a motivação inicial, pra não dizer a principal, mas ao contrário do que normalmente acontece no cinema comercial, o diretor José Padilha e sua trupe de colaboradores e roteiristas não deixaram de dar toda a atenção à qualidade na segunda empreitada contra o crime carioca do já icônico Capitão Nascimento – pelo contrário, o empenho da equipe foi tanto que “Tropa de Elite 2” consegue o impensável: supera a primeira parte da saga do oficial do BOPE. Porém, isso só foi possível devido à mudanças na essência do argumento da saga de Nascimento – algo que, certamente, não vai agradar à uma parcela considerável do público do primeiro filme.
Em “Tropa 1”, eram as atividades do BOPE no combate à criminalidade do Rio de Janeiro, bem como a considerável ilustração dos imensamente rígidos métodos de treinamento e seleção de soldados do grupo que integravam o cerne argumentativo do longa-metragem. Por consequência disso, o filme resultou em um excelente longa-metragem de ação explosiva e desenfreada, agrandando públicos dos mais variados tipos – mas ele não ousava ir muito além disso. Em “Tropa 2”, porém, com a saída de Nascimento do comando do BOPE para atuar na Secretaria de Segurança, o grupo de operações especiais perde o protagonismo em detrimento do registro desta nova esfera de atuação do capitão, o que, consequentemente, diminuiu consideravelmente o teor de ação da trama para dar espaço na história à ilustração das relações políticas e de poder e de suas várias imbricações, artimanhas e obscenidades morais e éticas decorrentes. Com essa narrativa mais reflexiva e abrangente, há grandes chances que os fãs do clássico cinema de ação, público este que compõe boa parte dos entusiastas do primeiro filme, considere “Tropa 2” um tanto mais chato e monótono que a primeira parte. Porém, este roteiro sensivelmente mais rico, que amplia a abordagem dos mecanismos e da dinâmica do crime do seu micro-foco, a sua porção mais visível, ordinária e imediata, para o macro-foco, dissecando o “backstage” da criminalidade, as suas ramificações além das fronteiras do subúrbio e da própria polícia, a exploração constante do crime pelos detentores do poder e, ainda, a potencialização da importância ficcional de Nascimento para a mudança da natureza do crime nos subúrbios e favelas da cidade do Rio de Janeiro, torna esta segunda parte bem mais relevante do ponto de vista crítico.
A mudança de abordagem também trouxe para a superfície um elemento que foi pouco explorado no primeiro filme: a instância humana da trama. Enquanto em “Tropa 1” toda a carga emocional era derivada da adrenalina das incontáveis sequências de ação e suspense que ocupavam grande parte do longa, nesta segunda parte ela muda de natureza e ganha maior destaque ao ter como origem os problemas familiares de Nascimento, que tenta levar à frente a relação bastante desgastada com o seu filho. Deste modo, a contínua sensação de tensão, que sufocou grande parte do lado humano do filme anterior, cede mais espaço para o retrato da vida pessoal conturbada de Nascimento, explorando mais intensamente a emoção do público, que acaba, assim, tendo uma ligação mais pessoal e profunda com a história e com seu protagonista – e aqui, claro, deve-se fazer dizer que isso também se deve, e muito, à atuação impecável de Wagner Moura.
“Tropa de Elite 2” é um longa-metragem claramente amadurecido: se o primeiro filme registra a ferida no corpo, o segundo retrata o vasto processo de infecção generalizada que se dá a partir do combate ineficiente contra esta. Com a equipe de produção estabelecendo como meta tornar tanto a trama como seu principal personagem mais densos e complexos, Nascimento muda e torna-se mais humano e realista ao ter alargada, pela experiência que vive no filme, a sua compreensão da criminalidade tão mais quanto o próprio retrato do crime na cidade do Rio o é, fazendo crível a transformação de um policial que vê o inimigo apenas na crime rotineiro e seus agentes mais aparentes para um homem abalado e perdido ao ser surpreendido pelo tamanho e alcance opressivos desta criminalidade, que se regenera à cada derrota sofrida. Porém, o choque sofrido é o baque necessário, pela tradição das sagas do cinema, antes de um epílogo triunfal ou shakespeareano – a saber, a morte do protagonista, o que, no caso deste filme que retrata tão bem a realidade carioca, seria o mais provável. Por esse motivo, talvez seja mesmo “Tropa de Elite 2” a conclusão mais adequada para a saga do oficial do BOPE: é melhor deixar Nascimento perdurar no imaginário coletivo em sua interminável e difícil luta contra o que ele chama de “sistema” do que encerrar sua carreira sacrificando-o no correr desta batalha – é um tanto menos realista e épico, mas acho ser mais justo para um personagem que já entrou para a história como uma dos maiores criações do cinema contemporâneo do nosso país.
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Em 1997, com o nascimento para breve de seu primeiro filho, Nascimento, capitão do BOPE do Rio de Janeiro, pretende arranjar um oficial a altura de substituí-lo no seu posto o mais breve possível. Mas antes disso é preciso colocar em prática a exigência do governo de tornar uma das favelas da cidade segura o bastante para que o Papa se instale por uma noite na comunidade vizinha à ela.
Antes de comentar qualquer polêmica, “Tropa de Elite” é um excelente longa-metragem de ação, mais um exemplo de que o Brasil está se especializando no cinema contemporâneo do gênero. A direção é competente e merece o devido crédito, mas a alma do filme reside mesmo no roteiro muito bem escrito, que amarra diversas subtramas no todo central sem causar confusão, sem cansar o espectador e sem nunca perder o seu caráter tenso e o seu ritmo eletrizante, e no elenco afinadíssimo, em especial Wagner Moura, que está soberbo no papel do controverso protagonista, expondo com impressionante precisão o pânico medonho de seu personagem de morrer e deixar sua mulher grávida desamparada – pânico este que se torna tão perigoso para os outros, quando revertido em stress quase sociopático nas suas missões nas favelas cariocas, quanto para ele próprio, quando desencadeia reações físicas intoleráveis.
Mas o diretor José Padilha não parece muito feliz com a repercussão de seu longa-metragem. Em uma entrevista no programa Roda Viva da TV Cultura, o diretor declarou estar sendo injustiçado, perseguido e incompreendido. Injustiçado porque a imprensa dita intelectualizada, a seu ver, escolhe arbitrariamente filmes para celebrar como obras-primas estabelecedoras de um novo paradigma no cinema brasileiro, e o seu filme, claro, não foi agraciado com tal unanimidade, chegando mesmo a confessar que não entende porque “Cidade de Deus” ganhou tal status, dando a entender que seu filme seria superior a este; perseguido porque essa mesma imprensa acusa “Tropa de Elite” de apologia fascista e, finalmente, incompreendido porque, segundo ele, o protagonista do seu longa está sendo confundido com um herói e seu filme está sendo mal-compreendido como defensor da truculência da polícia carioca. Sem parar para questionar a possibilidade de ele estar sendo injustiçado frente à algo como “Cidade de Deus” e ainda perseguido – o que não seria nada difícil -, enxergo como o verdadeiro problema a sua confessa sensação de estar sendo incompreendido. Segundo ele, capitão Nascimento, o protagonista, é um manipulador astuto, capaz de se utilizar dos sentimentos e dos pontos fracos alheios para obter o que quer e seu filme, por sua vez, condena tanto os exageros colossais da tropa de elite carioca quanto as ações condenáveis dos traficantes e dos consumidores de drogas ilícitas que, com isso, sustentam o mercado das drogas e, consequentemente, toda a desgraça desencadeada por ele. Que os consumidores de drogas, quer sejam usuários esporádicos ou viciados, sustentam a existência do tráfico, não há como eu discordar – pode não ser a única razão, e provavelmente não é, mas isso sozinho já responde por metade da culpa. Quanto ao seu filme fazer uma apologia da violência da tropa de elite do Rio de Janeiro, eu diria que pior seria fazer apologia da violência dos criminosos, também muito bem exposta em sequências do próprio longa-metragem de Padilha – entre os criminosos e os policias, com licença: eu fico com os últimos, por mais violentos que sejam seus métodos. Agora, sobre o filme conseguir criar, no espectador, um sentimento de identificação com o capitão Nascimento, assim como com os outros integrantes da tropa, quer ele goste ou não, isso é um fato – e não vejo problema algum quanto a isso. Mas o diretor vê. E é fácil perceber o porquê logo que você assista a qualquer entrevista de Padilha: o maior e único problema de “Tropa de Elite” é a febre de egolatria que se abateu sobre o seu diretor. A meu ver, a origem do conflito é que Padilha parece não querer entender que, apesar de a intenção do autor contar para o sentido de uma obra, quando esta encontra-se acabada ela fica livre para ser interpretada pelo seu público e o sentido dado pela maioria do público não deve nunca ser ignorado – e Padilha não apenas está o ignorando como está o rechaçando e depreciando, o que é, no mínimo, uma imensa falta de respeito com o seu público e, na pior das hipóteses, considerá-lo em boa parte ignorante. Não passa pela cabeça do diretor que existe a possibilidade de que ele próprio pode não ter se dado conta de que este sentido existe no seu filme, sendo devidamente captado pelo seu público. Pra mim parece óbvio que uma obra pode ter mais de uma interpretação adequada, e uma interpretação só se torna irrelevante e deslocada quando não há dados na referida obra que a suportem – dados que, no caso de “Tropa de Elite”, são de fácil observação e coleta até mesmo por conta da narração em off do protagonista, que não tem qualquer pudor de revelar para o público suas intenções e emoções – ou quando os dados de uma outra interpretação se mostram mais qualificados. E a interpretação que o diretor quer dar à “Tropa de Elite” em nenhum momento se torna muito mais relevante ou qualificada que a do público e crítica, que vê com satisfação as ações violentas do BOPE porque entende que o grupo não conseguiria agir de outra forma dada a realidade estúpida e caótica que é obrigado a enfrentar, e se mostra capaz de simpatizar com o capitão Nascimento porque, dada a situação em que se encontra, entende ele muito mais como alguém humano do que um sujeito frio, manipulador e aproveitador.
Padilha parece ter se afobado um pouco demais com o sucesso. Como jamais esperou receber tanta atenção de tão diferentes holofotes – os da imprensa, os dos intelectuais, os do público qualificado e os do “povão” – o diretor parece ter se arrependido do discurso categórico de seu filme e de seu fenômeno comercial, e resolveu amainar o peso destas duas coisas aproveitando toda e qualquer oportunidade para, aparentemente, posar de cineasta intelectualizado, e profundamente autoral ao dizer “vocês não entenderam nada” – ele chegou mesmo ao ponto de discordar das conclusões do maior contribuidor do argumento de seu filme que, para mim, seria, muito antes do diretor, o grande responsável pelo seu sentido e sua essência hiper-realista. Ao invés de demonstrar arrependimento das dimensões e da identidade que sua obra tomou o diretor devia assumi-la fervorosamente, afirmando-a como cinema comercial de excelência capaz de retratar a realidade caótica, dilacerante e selvagem de uma das maiores e mais famosas regiões urbanas do mundo. Mas, talvez isso seja só uma loucura temporária: acabo de ler neste site que Padilha foi bastante cordial ao responder o comentário gratuitamente grosseiro de Hector Babenco sobre o porquê do filme não ter sido selecionado como candidato brasileiro ao Oscar. Tomara mesmo que esses rompantes de egocentrismo confuso deste diretor tão promissor sejam apenas fruto de uma repentina febre “Lux Luxo” (ou, para quem não entendeu: “Sou uma Diva!”)
Utilize os links a seguir (na surdina porque sou capaz de ser perseguido pelo capitão Nascimento por conta disso – que meda!)
OBS: links funcionais mas não testados.
em 4 partes e bem menor:
ou um desses maiores:
ou
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