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Tag: literatura sul-americana

“As Iniciais”, de Bernardo Carvalho

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No jantar em um mosteiro transformado em retiro para amigos em uma ilha, escritor serve de ouvinte às histórias e de testemunha dos acontecimentos que envolvem grupo de intelectuais e membros da elite. Na noite que é feita a recepção à alguns convidados, recebe confidencialmente uma caixinha com iniciais entalhadas – um mistério que vai lhe intrigar por muito tempo.
Este é o primeiro livro que leio de Bernardo Carvalho, mas pelo pouco que já pude perceber, o escritor brasileiro é bastante afeito aos jogos narrativos. “As Iniciais”, livro seu lançado há onze anos, é um verdadeiro laboratório desta técnica, já que todos os elementos que a perfazem estão encobertos por este artíficio ardiloso. No seu contato mais imediato com o livro, o leitor já se depara com esta feição ao verificar que na história todos os personagens e cenários são identificados somente pela letra inicial, o que faz com que o leitor leve mais tempo do que normalmente o faria para associar cada personagem com a sua história particular.
Por sinal, aí temos mais um elemento composto sob o domínio desta armadilha literária, a narrativa em si. Em uma primeira instância, o enredo principal é dividido em dois momentos diferentes que tem um intervalo de dez anos de diferença, porém a situação apresentada é da mesma natureza, um jantar e um almoço, eventos sociais cujas funções de celebração e apresentação das personalidades que o compõe, bem como de suas histórias particulares, são esplendidamente manipuladas pelo escritor para que a narrativa principal seja constantemente permeada e entrecortada pelas sub-narrativas dos personagens, construindo um vai-vem entre presente, passado e em alguns momentos específicos até futuro que, agora me vem à cabeça, a dinâmica do seriado americano “Lost” lembra consideravelmente. No entanto, diferentemente da série criada por J.J. Abrams e Damon Lidelof, o narrador aqui também é um personagem, o que faz com que todas as histórias e revelações estejam sempre limitadas e encobertas pelo (des)conhecimento que o próprio personagem tem de todos os outros. Este caráter de consciência restrita que o narrador-personagem tem em relação aos outros acaba implicando em mais um jogo, o das identidades. Ao longo da narrativa e principalmente com o pulo temporal entre a noite do jantar no mosteiro e o almoço no casarão em uma serra de um país emergente, a identidade de alguns personagens é posta em dúvida por diferentes histórias sobre eles que vão sendo reveladas pelo narrador e outros personagens, histórias que se contradizem sobre o que se sabe de seu passado, num construir e desconstruir constante de suas identidades, levando o leitor a jamais ter segurança de quem estas pessoas verdadeiramente seriam. Junte-se isso ao artifício de identificá-los somente pelas inicias e você acaba em uma armadilha narrativa das mais sofisticadas: seria o homenageado “X” do almoço no casarão o convidado “Y” do jantar no mosteiro que, diga-se, naquela mesma noite envolveu-se em estranho evento clandestinamente testemunhado pelo narrador? E a profissão de “Y” seria mesmo aquela com a qual foi apresentado no almoço em sua homenagem ou exerceria ele ocupação muito mais insidiosa e perigosa, como confidenciam alguns convidados presentes ao evento? Não é difícil notar aqui o esplêndido jogo metaficcional ao ter a própria narrativa tecida de sub-narrativas criadas pelos próprios personagens, que por sua vez funcionam como verdadeiros autores destes outros personagens enigmáticos e de suas histórias quase sempre insólitas e bizarras que podem ou não ser pura invenção, tão ficcionais portanto quanto o livro que o leitor tem nas mãos. Este jogo metaficcional traiçoeiro que intriga o narrador-personagem acaba também, por consequência, sendo partilhado pelo leitor, que como ele também é envolvido em um emaranhado narrativo que não apenas os confunde o tempo todo mas, igualmente, não lhes entrega qualquer garantia de que tudo será elucidado em algum momento.
Bernardo Carvalho, contudo, não se contenta com isso e também explora a metaficcionalidade em uma instância mais explícita e direta ao conceber o seu personagem-narrador como um escritor que pontua seu relato com comentários sobre seu próprio trabalho, confessando que entre seus vícios no exercício de sua profissão está a adoção do estilo literário algo “artificial” de um dos principais personagens da história, um escritor egocêntrico e narcisista que procura recobrir a realidade que o cerca de uma cerimoniosa e quase sacra teatralidade.
Compondo uma narrativa que inicialmente parece encarregar-se de retratar tanto os anseios e ambições culturais como a vulgar ordinariedade que vagueia as relações de intelectuais e membros de uma casta consideravelmente abastada da sociedade, o escritor brasileiro sorrateiramente enreda o leitor nas suas artiminhas literárias, lançando-o à apreciação de uma narrativa que o tempo todo desafia as obviedades com o descortinar ardiloso de coincidências inesperadas nas várias situações e histórias idílicas que são constantemente reveladas e retomadas pelo e para o narrador. Como se vê, o interesse despertado pela busca da “verdade” na(s) narrativa(s) de “As Inicias” é apenas o ponto de partida do livro, interesse que ao longo da leitura vai sendo relocado para o produto deste jogo arquitetado e cada vez mais intensificado pelo escritor. É o efeito da narrativa e não a sua materialidade própria que termina por seduzir o leitor nesta obra singular de Bernardo Carvalho.

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“O Museu Darbot e Outros Mistérios”, de Victor Giudice

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Talvez o livro mais celebrado dos poucos publicados pelo quase desconhecido escritor carioca Victor Giúdice, falecido no ano de 1997, seja o livro de contos “O Museu Darbot e Outros Mistérios”, ganhador do Prêmio Jabuti de 1995. Nas nove histórias que compõe a obra, o autor manifesta todas as características de sua narrativa fascinante que subverte convenções e elementos já consagrados da literatura universal em uma escrita gritantemente contemporânea.
Não há dúvidas que, dentre os traços que caracterizam seu estilo, a composição de enredos que de uma forma ou de outra fogem do plano da realidade seja o mais emblemático de sua escrita: por vezes sendo assaltada pela repentina introdução de elementos genuinamente fantásticos – como acontece no hilário conto “A Festa de Natal da Condessa Gamiani” – ou em outras entregue ao domínio do delírio subjetivo do personagem-narrador – como pode ser atestado em “A História que meu pai não contou” -, o caráter idílico de suas histórias é sempre o elemento que primeiro encanta o leitor. Porém, esta característica fantástica de seus enredos não se sustenta apenas pela sua condição extraordinária, ela é adaptada à densidade do próprio enredo, angariando no leitor bem mais do que um encantamento que seria garantidamente superficial. O que verdadeiramente faz o encanto do leitor ser transformado em pleno êxtase o é a densidade que o fantástico ganha nos contos do escritor carioca. Ao invés de permanecer conformado ao efeito confortável de sua própria essência super-natural, que pode algumas vezes soar um tanto trivial, o fantástico tem aqui uma presença mais sofisticada, materializando assim uma maior densidade nos enredos em que é aplicado – algo que fica bastante palpável nos contos “Jurisprudência”, em que veicula uma crítica social de modo bastante singular, e “O Hotel”, onde ele corporifica, com uma analogia fabulosa, a repressão perpretada por regimes ditatoriais.
Porém, não é apenas o elemento fantástico que é subvertido à instrumento de adensamento da narrativa pelo autor, outros recursos estilísticos igualmente servem à este propósito na narrativa. É impossível, por exemplo, não notar que o humor negro, traço recorrente em quase todas as histórias, é a ferramenta potencializadora do conto “A História que meu pai não contou”, já que ao integrar-se ao próprio enredo auxilia na intensificação de suas nuances, tornando ainda mais vigorosa a apropriação da tradição da literatura gótica e de horror que é subvertida por Victor Giúdice em uma narrativa inegavelmente pós-moderna. Do mesmo modo, fica patente no gosto em revelar detalhadamente o culto refinamento do protagonista de “A Criação: Efemérides” e na ostensiva enumeração das minúcias do luxo e pompa tipicamente aristocráticos de “A Festa de Natal da Condessa Gamiani” que a narrativa descritiva adota o papel de veículo de construção da tonalidade satírica que, no caso particular destas duas histórias tem como alvo os costumes, comportamentos e crenças dos intelectuais e das classes mais abastadas.
A sátira, por sinal, é a alma de uma entre as duas histórias do livro que não faz uso de elementos fantásticos, “O Museu Darbot”. Na trama espetacular que elaborou, Victor Giúdice mapeia magistralmente a construção de um mito das artes plásticas, precursor de um novo paradigma no mundo da pintura, para trazer à tona o que há de arbitrário no ato de se elevar algo ao caráter de obra de arte, descortinando o que por vezes há de incompreensível, para não dizer ridículo, nas convenções e dogmas artísticos.
Infelizmente, com a sua morte em 1997, o Brasil perdeu o reforço de um dos autores mais brilhantes da ficção brasileira contemporânea para a sua literatura. Contudo, a sua contribuição inegável foi dada: uma narrativa de impressionante versatilidade temática que apesar de sua densidade estilística e transbordante erudição nunca deixa o leitor aborrecido ou desconcertado – pelo contrário, seu vigor arrebata-o, completamente seduzido, à um universo de histórias extraordinárias.

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“Os Prêmios”, de Julio Cortázar

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Grupo diverso de cidadãos de Buenos Aires, ganhadores de uma loteria fomentada pelo governo argentino, embarca em um navio misto – de passeio e de carga, portanto – para desfrutar de seu prêmio: um cruzeiro oceânico. Uma vez lá, uma inquietação se instaura nos passageiros pelas restrições no livre trânsito através da embarcação e pela falta de informações sobre o trajeto da viagem.
Escrita por Julio Cortázar, escritor de origem argentina, nascido na Bélgica e que adotou a França para passar metade de sua vida, a novela “Os Prêmios” figura entre suas obras menos conhecidas. Parte disto deve-se ao fato de que Cortázar tornou-se muito conhecido pelos seus contos, histórias que algumas vezes frustram o leitor por sofrerem de uma aparente falta de sentido e dinamismo – impressão esta que, de um certo modo, não é errada mas se configura num equívoco, já que estes contos em especial procuram obter o efeito de estranhamento pelo destrinchamento do ordinário e não do bizarro ou inóspito. Porém, talvez o fato mais determinante que conferiu um certo status underground à “Os Prêmios” é que esta novela foi elaborada, segundo o próprio autor, para que ele pudesse desviar-se de certezas pré-concebidas que, com o tempo, os leitores foram formulando sobre o estilo de sua narrativa. As mudanças estilísticas conscientes não chegam a ser numerosas nem alteram profundamente a narrativa de Cortázar – o ritmo lento, possível devido aos diálogos extensos que exploram desde questões metafísicas até costumes e relações humanas, é a alteração que fica mais aparente -, no entanto, a sua atuação conjunta acaba tendo um efeito negativo bastante concreto: por consequências disto, a narrativa de “Os Prêmios” ganha identidade incerta na bibliografia de Cortázar, vagueando confusa entre a fuga de seu estilo e adoção dele. Os mistérios da história criada por Cortázar, com isso, acabam diluindo-se na batalha com os inúmeros e longos diálogos, e a narratava, assim, aparenta arrastar-se mais do que se propõe intencionalmente, perdendo muito do impacto, força e fascínio que desperta no leitor inicialmente.
Mas, apesar dos deslizes, a metade da narrativa que preserva as características do trabalho de Cortázar mantém o interesse do leitor até o epílogo de sua história. A sustentação da natureza misteriosa das proibições, da improbabilidade da veracidade das informações veiculadas para mantê-las e mesmo as dúvidas e o desconhecimento quase total sobre a origem da tripulação, da própria embarcação e do seu destino mantém o leitor intrigado, ainda mais por conta da incerteza de que qualquer destas coisas venha a ser esclarecida na conclusão da trama, como é habitual nas obras do escritor argentino, que acaba por explorar o mistério muito mais pelo gosto do efeito despertado do que para levar o leitor a construir lentamente a resolução dos enigmas. A variada gama de personagens, bem como o breve desvendamento de suas personalidades também é outra virtude desta novela: à exceção de Persio e seus monólogos introspectivos que insistem em versar sobre o oculto e o místico sem exibir sequer uma sombra do charme da emblemática narrativa difusa do autor, o restante dos passageiros criados por Julio Cortázar constroem ao mesmo tempo uma analogia à sociedade, seus costumes e convenções e uma sagaz ilustração das aspirações e incertezas humanas, que o escritor nunca deixa de lembrar estar sempre inundadas pela subjetividade de cada personagem.
É uma pena que o desenvolvimento adequado de certos aspectos da trama tenham sido afetados pelas ambições do autor em recriar seu estilo. A leitura de “Os Prêmios” se tornaria muito mais fascinante se Cortázar tivesse dado vazão à sua capacidade natural de manipular os mistérios idiossincráticos mais aparentemente cotidianos e se rendido à materialização do fluir de sua narrativa tão peculiarmente difusa e prolixa, mas infelizmente o autor sucumbiu ao desejo de mudança estilística e, com isso, sucumbiram em “Os Prêmios” boa parte dos encantos que alçaram Cortázar à condição de um dos maiores nomes da literatura latino-americana.

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“Feriado de Mim Mesmo”, de Santiago Nazarian

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Jovem tradutor, que tem o hábito de passar a maior parte do tempo sozinho no seu apartamento, começa a desconfiar de que alguém o está invadindo, ainda que admita a possibilidade de que isso talvez seja fruto de sua imaginação.
O terceiro livro publicado pelo paulista Santiago Nazarian constitui-se em uma história econômica na exploração de espaço e de personagens, possuindo uma estrutura fortemente teatral. Mas enquanto qualquer obra desta monta tem como fundamento o diálogo entre os personagens, o livro de Nazarian prima pela exploração do diálogo internalizado, pela construção deste na mente do protagonista que habita sua história. Nela, o leitor é levado à um acreditar e desacreditar constantes, suspenso na atmosfera de uma narrativa que mesmo tendo os pés bem fincados no real explora de modo primoroso aquilo que aparentemente não o é – mas seria mesmo apenas aparente? Afinal, tudo – as impressões do “eu”, os vestígios do “outro”, as até um tanto inofensivas perturbações cotidianas – seria fruto de um estado de alteração perceptiva ou sintoma de um invasor sorrateiro?
É certo que muitas histórias já foram escritas versando sobre a substância com a qual “Feriado de Mim Mesmo” lida, mas a abordagem dada por Nazarian à esta substância é seu grande diferencial: este “monólogo mental”, por assim dizer, é fruto de uma escrita direta e sucinta, expressa em períodos curtos de caráter bastante objetivo que procuram a maior parte do tempo afastar-se de metáforas. Assim, essencialmente, “Feriado de Mim Mesmo” desenvolve um enredo que lida com a umidade complexa do psicológico paradoxalmente construído sobre a secura pragmática da linguagem realista.
Contudo, a consequência mais interessante que se obtém da leitura de “Feriado de Mim Mesmo” – ao menos na minha leitura – é outra: o jogo arquitetado entre as noções de biografia e ficção. Se iniciada a apreciação da obra depois de obtidas as informações sobre o seu autor em uma das orelhas do livro, haveremos de encontrar algumas prováveis similaridades entre o escritor e o protagonista da história, o que faz a leitura ser contaminada pela idéia de que a trama parte de alguns pressupostos biográficos. Porém, à medida que as páginas avançam os resquícios biográficos vão desmanchando suas formas, que passam a ser tomadas paulatinamente pela substância própria de uma ficção que alimenta-se destas, assimilando-as numa antropofagia narrativa visceral e violenta – não à toa a própria conclusão da trama materializa a noção antropofágica de modo bastante literal. É desta devoração da biografia pela ficção que nasce uma narrativa de dinâmica complexa, uma “ficção de si mesmo” que se utiliza dos artifícios tradicionais da literatura para subvertê-los em um jogo meta-ficcional e meta-literário que pulsa em uma esquizofrenia narrativa ascendente. É dessa forma que o sonho e pesadelo da produção cultural pós-moderna são materializados simultaneamente na escrita de “Feriado de Mim Mesmo” – um livro que ilustra com maestria como uma trama que lida com as conflitos e terrores do “supra-eu” contemporâneo podem interessar ao público, ao contrário do que foi feito no mais recente longa-metragem de Murilo Salles.

P.S.: Alguém me disse certa vez, não recordo se foi o ou o Pelvini, que faltava ao meu blog resenhas de livros. Bem, este é o post que inaugura minha tentativa de suplantar com sinceridade a minha vergonhosa preguiça de manter o hábito da leitura – também ofuscado pelas toneladas de músicas, filmes e informação ofertados na internet. Daqui em diante procurarei manter uma frequência razoável na publicação de textos sobre literatura – particularmente sobre livros de ficção.

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