Toda vez que uma banda ou artista ensaia uma mudança de sonoridade isso não é feito sem causar certo desgosto em boa parcela dos fãs. Em parte, a banda britânica Muse já tinha vivido essa experiência com o disco Black Holes & Revelations, lançado em 2006, só que os shows da turnê do lançamento deste álbum foram aclamados pelo público e pela crítica, e desse modo o impressionante poder da banda ao se apresentar no palco fez com que os fãs frustados olhassem com mais carinho para o disco. Com The Resistance, álbum a ser lançado oficialmente dentro de algumas horas, o fato provavelmente vai se repetir em alguma medida, isto se ele não se apresentar com uma intensidade razoavelmente maior.
O novo disco mostra que os passos dados em Black Holes & Revelations não foram apagados desde seu lançamento; na verdade abriram caminho para que a banda trilhasse novamente espaços lá percorridos, sem medo de escandalizar alguns fãs ao misturar seu rock com elementos genuinamente pop. Sim, porque se alguns fãs até torceram o nariz ao ter o primeiro contato com “Supermassive Black Hole” e algum tempo depois descobriram a beleza descaradamente dançante e chacoalhante da canção, certamente eles já estarão preparados para “Uprising”, que conta com uma bateria bem marcada e uma camada generosa de riffs de guitarra acompanhados por palmas que alimentam a cadência da música e sintetizações que acolchoam a melodia, mas o que esperar da reação destes fãs ao ouvir a ousadia da banda em “Undisclosed Desires”, que joga o rock para escanteio e coloca em cena um pop com batida eletrônica, pizzicatos e vocais grudentos e algo rasos que remetem à uma mistura do synthpop poderoso do Depeche Mode com a rítmica rastejante do R&B da atualidade? Não é uma música fácil de se engolir, e deve-se admitir que considerando-se o panteão de composições da banda ela é realmente fraca, mas não deixa de ser uma música cativante e, por que não, realmente sincera.
Porém, o medo ou repúdio fica mesmo resumido à esta faixa, pois The Resistance é um disco com o rock da banda, sempre repleto de inferências sonoras épicas e grandiloquentes marcando presença com orgulho, como em “Unnatural Selection”, que nasce com um orgão cheio de fulgor messiânico, logo é assaltada por bateria, guitarras e baixo ferozmente ensandecidos e ondula com uma ponte sonora em que a melodia é desacelerada, ganhando tonalidades mais melódicas. Soa dramático? Mas essa é realmente a palavra que melhor define faixas como esta e “MK Ultra”, que além dos riffs incandescentes de Matt na guitarra e Chris no baixo e da energia e versatilidade de Dom na bateria, ainda conta com algumas sintetizações que complementam o estado de emergência sonoro da canção. “Guiding Light” preserva o imperativo sonoro com a bateria e baixo em pulso rompante contínuo e nos acordes da guitarra que variam entre o melódico e o rascante durante sua execução, mas o compasso nunca é acelerado, cultivando uma harmonia triste e suplicante. Por sua vez, a faixa título do disco, “Resistance”, vai mais longe, ou melhor, volta mais atrás: além de apresentar o trabalho fabuloso de Dominic na bateria e Chris no baixo, que se encarregam de construir uma base sincopadíssima para a melodia onde brilham acordes nostálgicos de piano e o vocal escandalosamente irretocável de Matthew, a música é introduzida e pontuada por uma sintetização fantasmagórica que remete ao trecho final da harmonia de “Citizen Erased”, uma das canções brilhantes do segundo álbum da banda, Origin of Symmetry.
Não é difícil de se observar, porém, que a marca mais estridente deste quinto disco de estúdio da banda britânica não é o tempero pop que se verifica na sua escala auditiva, mas as suas recorrentes referências à música erudita. Nesta categoria, primeiramente o que se encontra são as citações explícitas à obras famosas do gênero, contudo mesmo partilhando essa similaridade há variações no modo como isto é feito em cada representante deste grupo de músicas. Por exemplo, enquanto “I Belong To You/Mon CœurS’ouvre à ta Voix”, deliciosa faixa com sabor de música de cabaret pelo virtuosismo de Matthew no piano e pela interferência de um clarinete, se resume à referência mais simples por conta do interlúdio no qual o vocalista se rasga nos versos extraídos de uma ária da ópera “Sansão e Dalila” do compositor francês Camille Saint-Saëns, “United States of Eurasia ( + Colletral Damage)”, apesar de ser fechada por uma reinterpretação doce e terna de um dos Noturnos de Frédéric Chopin, não se contenta com pouco e se derrama em uma orgia sonora com variações melódicas bipolares que vão dos acordes no piano, vocais e suíte de cordas mais contemplativos até uma explosão faraônica de guitarras, baixo, bateria, vocais e orquestração de cordas ultra-dramáticos ebulindo reminescências que vão desde óperas-rock emblemáticas até composicões para o cinema como a trilha de Maurice Jarre para o fabuloso “Lawrence da Arábia“, do diretor David Lean. Porém a banda não se resume à citar clássicos, ela também quis compor os seus. E assim é que a peça sinfônica “Exogenesis Symphony” foi escolhida para fechar o trabalho como o grandioso monolito que sintetiza a essência deste disco. Dividida em três partes – “Overture”, “Cross-Pollination” e “Redemption” – e estendendo-se por quase 14 minutos, a peça é iniciada com arranjo de cordas e sopros que criam uma ambiência esvoaçante que ganha a adição dos instrumentos do trio britânico e do vocal quase transcendental de Matthew Bellamy, sucedida por orquestração que é capitaneada por um solo dedilhado com maestria ao piano que logo é promovido à um rock glorioso e revertido novamente à instrumentação que introduziu a sequência e é fechada com uma serena harmonia guiada por um piano de colorações tristes como o de Beethoven em “Moonlight Sonata” que se desdobra em uma melodia orquestral com vocal emocionante até recrudescer novamente para o piano de matizes pastorais, enormemente plácido e gentil.
The Resistance pode soar excessivo com sua multitude de referências e estilos se sucedendo ou sobrepondo a cada faixa e certamente vai servir como a tão desejada munição para que os detratores, uma vez mais, gritem de modo sensacionalista e panfletário o seu discurso já batido e ultrapassado de como a banda é falsa por não fazer mais do que emular sonoridades alheias – como se estas bandas de rock não devessem tudo o que fazem aos precursores do gênero, como Beatles, Led Zeppelin e Pink Floyd -, mas os fãs sensatos do Muse já aprenderam a ignorar a perseguição apaixonada – que, ora vejam, por isso mesmo soa muito mais como mera dor de cotovelo – dos que enxergam a banda através deste prisma distorcido e se deixam conduzir pelo rebuscamento sonoro do trio britânico, arrebatados pelo universo cada vez mais extenso de suas criações ricas em “sons e visões” – pedindo aqui licença à David Bowie, cânone a quem toda banda e artista que está na ativa deve reverências – cujas influências e referências são assumidas sem qualquer vergonha, ao contrário de grande parte dos nomes do rock atual, que ao serem confrontados por estes senhores magníficos teriam que confessar, constrangidos, nunca tê-lo admitido.
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Aproveite para baixar os outros discos da banda clicando na tag “muse” ou nos “posts relacionados”, logo abaixo. Como o primeiro disco não possui uma resenha nos arquivos do blog, o link para download fica a seguir.