Um surto epidêmico de cegueira branca, incurável, atinge uma grande metrópole, despertando nos habitantes um temor que leva o governo a isolar os contaminados. Dentre eles está um médico e sua esposa, a única que permanece imune à estranha doença.
A adaptação de Fernando Meirelles do livro do escritor português José Saramago fascinou o autor da história, mas não agradou muito crítica e público, passando de certa forma despercebido neste ano de 2008, quando não razoavelmente criticado. A reação tem seus motivos: “Ensaio sobre a Cegueira” resultou em um filme com acertos e erros consideráveis, com maior peso para estes últimos.
A estética do filme é já um retrato desta ambivalência: se de um lado a incessante irradiação de tudo com uma aura branca, arquitetada pela fotografia de César Charlone, traz ao espectador o mesmo desespero e temor vivido pelos personagens, que vagam perdidos em um limbo branco, ela também cansa a expectação do filme a certa altura, “chapando” as sensações do público pela utilização excessiva do artifício. A edição também tem sua dose de sucesso e falha: apesar de conceder ritmo e dinâmica às cenas externas, nas tomadas internas ela não consegue obter o mesmo efeito, ainda que mantenha a tensão em um bom nível. Mas as aspectos técnicos apresentam apenas as irregularidades mais visíveis – é onde nasce um filme, no seu argumento e roteiro, que reside aquilo que fez este novo longa-metragem do brasileiro Fernando Meirelles ser celebrado por alguns e ignorado por muitos outros.
A história criada por Saramago no livro “Ensaio sobre a Cegueira”, e aqui adaptada por Don McKellar, instiga enormemente a curiosidade pelas duas idéias que lhe dão partida. Primeiro, a concepção de uma cegueira que não afunda sua vítima em um breu profundo, mas em um reluzente oceano branco, intriga porque parece ser ainda mais agonizante por, teoricamente, não permitir que a pessoa tenha algum descanso, já que ela passa a viver em um estado de vigília visual, por assim dizer, mesmo na escuridão. Segundo, e tão fascinante quanto a anterior, a idéia de apresentar a moléstia como uma epidemia, reservando a somente uma pessoa a imunidade à infecção confere à este personagem tanto uma vantagem sobre os outros quanto um distanciamento destes, afastando-o daquilo que iguala e une todos.
Essas duas características do enredo a princípio provocam interesse no espectador, mas a medida que é promovido o desenrolar do enredo, cada conflito inserido na história faz com que sua originalidade e caráter diferenciador sejam pouco a pouco degradados, sujeitando o enredo à idéias recicladas e lugares-comuns. A longa sequência na quarentena é o seu defeito mais gritante, reduzindo o filme a uma experiência-limite em ambiente fechado que guarda parentesco com as idéias de George Orwell – não à toa, pois José Saramago é comunista rasgado -, o que deixa o filme com um gosto de café requentado. A insistência de Meirelles em reproduzir com esmero esse episódio de “Ensaio sobre a Cegueira” também acaba por torná-lo excessivamente longo, minimizando o impacto das cenas exteriores e deixando espaço até para um epílogo “família de comercial de margarina” – tivesse a sequência de quarentena sido encurtada e o filme encerrado cerca de 20 minutos antes, com a tomada em elevação da procissão desesperançada dos cegos e sua guia por uma São Paulo ainda mais caótica que o habitual e povoada por uns poucos infelizes que jazem confusos pelas ruas, o filme de Fernando Meirelles teria superado a feição de ensaio que carrega já no título.
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Olá,
Por oportuno: espero que não tenha levado o comentário para o lado pessoal, porque ainda que não tenha dito anteriormente, gostei e gosto das críticas que V. faz.
Minha observação foi quanto ao fato de faltar hoje a “opinião embasada (que faz com que) toda crítica passa a ser válida, por mais que você discorde dela ou não”. Reafirmo também minha posição de que, ao invés de ‘formadores’ de opinião, os críticos devem ser “florescedores” de opinião, e só.
De qualquer forma, endosso o quão válida foi a visita, o quão oportuno foi o comentário e o quão agradável foi a réplica.
Obrigado!
Boas festas!
^^
Não, eu não levei para o lado pessoal, de forma alguma: apenas respondi por achar necessário esclarecer minhas posições e crenças à respeito do que você disse. particularmente no que se refere aos críticos profissionais e ao porquê do filme ser bom ou não.
agradeço novamente o comentário inteligente – não são tantos os comentários deste tipo quanto eu desejava que fossem deixados no meu blog -, a visita e desejo igualmente boas festas.
Em tempo: talvez, uma coisa é analisar certa obra e incutir nela opiniões pessoais e percepções particulares, algo perfeitamente saudável, uma vez que não imponha aos outros a obrigatoriedade de aceitá-las.
Outra é tomar cada palavra própria como lei e desmerecer o trabalho alheio ao bel-prazer – prática comum de ‘nossos’ críticos de cinema atuais.
A minha referência à avaliação feita pelos críticos foi apenas ilustrativa, para apontar que, de certa forma, e talvez não pelos mesmos motivos, eu concordo com eles.
Já sobre a divagação do que seria pensado sobre “Ensaio sobre a Cegueira” se o diretor fosse outro não tem qualquer efeito, pois fosse outro o diretor o filme seria de fato OUTRO, e não ESTE – quer fosse esse OUTRO filme melhor ou ainda pior.
Bem, cada pessoa tem o seu estilo ao avaliar alguma obra – alguns mais sucintos, outros mais prolixos, alguns mais formais, outros menos, alguns mais sérios, outros mais irônicos. Eu tenho um pouco de cada – menos do sucinto – e ironias estão presentes em quase todo texto que escrevo – e isso não torna o texto mais ou menos válido. Da mesma forma funciona com os críticos por profissão.
Quanto à “marmelada que deu certo ou não”, e sua visão do porque o filme interessa, eu discordo radicalmente. É justamente por essa idéia batida que conduz o filme, de que todos só vão enxergar e dar valor ao que importa na vida quando deixam de enxergar que, a meu ver, torna o filme desinteressante. Essa é uma idéia um tanto quanto batida e traiçoeira, e só realmente rende algo relevante quando o diretor e/ou roteirista consegue se desvencilhar de pieguices e soluções fáceis – o que não é inteiramente o caso deste filme, ainda que não seja um desastre completo.
Sobre “tomar cada palavra própria como lei e desmerecer o trabalho alheio ao bel-prazer”, também discordo. Uma vez que seja fundamentada, e que não se trate de uma opinião “ao léu”, do tipo “não gosto e pronto”, mas de uma opinião embasada, que exponha ao entendimento as razões e porquês de algo ser ou não bom, aí toda crítica passa a ser válida, por mais que você discorde dela ou não.
Não sei se concordo com seu ponto de vista.
Primeiro porque considero a crítica cinematográfica do, digamos, “grande escalão” burra e recalcada, uma vez que cada vez mais tem transparecido uma opinião egocêntrica e pedante ao invés de dar um parecer objetivo e imparcial a respeito das obras que analisa. Considere se a direção fosse de outro diretor famoso consagrado e, principalmente, não-brasileiro. Não desejo ser ufanista, mas todos nós sabemos o que quis dizer com isso.
Segundo porque os termos “café requentado”, “comercial de margarina” são perfeitamente aplicáveis à análise que V. fez – mas eu os creio de outro modo propositais: quer seja por Meirelles, quer seja pelo Saramago. Marmelada que deu certo, ou não, acredito que há por trás desses territórios comuns uma crítica muito mais velada e muito mais dolorida à vocação da humanidade de viciar-se circularmente em fatos rotineiros, fadando-se a tornar seus valores meros clichês, o que se sobrepõe ao próprio fio condutor chocante da cegueira branca.
Abraços, inté! ^^
bom, eu sou fã de saramago, de julianne moore e de gael garcia bernal, o que talvez possa ter turvado minhas idéias. mas digo que achei este cegueira bem satisfatório, ainda mais por não ferir o livro. eu achava também que algumas cenas seriam “infilmáveis” quando li o livro (pelo visto a minha criatividade que estava cega).
de qualquer forma, pra mim, o principal problema do filme é a narração. aquela narração é absolutamente desnecessária, meu deus! sem a voz do danny glover aquela cena final teria sido bem menos piegas, abrindo um leque de pensamentos para quem está assistindo…
Se filmou o infilmável eu não sei, mas que explicou o desnecessário, ah, isso com certeza…
suas críticas, como sempre, excelentes e bem escritas (:
cansativo e repetitivo. poderia muito bem durar apenas uma hora.
e como você disse, o filme não traz nada de novo. é mais do mesmo.