Reza a lenda que a primeira versão do 3o disco de Fiona Apple, Extraordinary Machine, jamais viu oficialmente a luz do sol porque os executivos da gravadora Sony/Epic o acharam sem qualquer apelo comercial, e por conta disso, o disco, em boa parte remodelado, só foi lançado dois anos depois – e isso graças à uma intensa mobilização dos fãs. Fico curioso imaginando o que os atuais executivos da gravadora pensaram ao ouvir o novo disco da cantora, The Idler Wheel. Se a primeira versão de Extraordinary Machine, com suas orquestrações transbordantes, baterias imponentes e pianos retumbantes foi avaliada daquele modo por eles, o que dizer de um disco tão, mas tão seco que pouco se pode notar da presença de um baixo, quem dirá de uma guitarra? Só posso pensar que eles não ouviram o disco. Ou vai ver os novos chefes do selo musical são mais afeitos à uma cantora que dispensa um produtor musical e se deixa aventurar em melodias enormemente despojadas e improvisadas em companhia apenas do seu novo comparsa, o baterista Charlie Drayton. Afora algumas pequenas, pontualíssimas inserções de alguns instrumentos – como celestes – em participações tímidas, todas as melodias do disco se apoiam em percussão, muitas vezes produzida de modo nada ortodoxo, e no piano da cantora – que nem mesmo aparece em todas as faixas. É uma abordagem bastante radical, embora esse caminho faça algum sentido depois de Extraordinary Machine ter se despido melodicamente de sua primeira versão, produzida por Jon Brion, para a segunda, a cargo de Mike Elizondo e Brian Kehew. Por conta disso, mesmo já tendo sido preparados com o lançamento de algumas músicas do disco na internet, os fãs certamente vão estranhar o primeiro contato com o álbum, já que canções como “Daredevil”, com sua percussão ao mesmo tempo frenética e discreta como o bater de asas de um beija-flor, o piano de toques espaçados e o vocal esquizofrênico no refrão, “Jonathan”, com pianos mais oblíquos até do que se poderia esperar da cantora e com percussão e ruídos mecanizados que lembram o trabalho de Björk em algumas faixas de Selmasongs, “Left Alone”, com uma jam session solo de bateria, piano impromptu e sequências vocais inesperadas e “Periphery”, com piano de acordes minimalistas e sample do que parece ser um calçado sendo esfregado em um tapete, entram um tanto quadradas no ouvido – mas há chances de que eles sejam amaciadas um pouco mais em posteriores audições.
Isso não quer dizer, porém, que o minimalismo preponderante resulte apenas em canções difíceis que necessariamente precisam de algum tempo sendo processadas nos tímpanos. Várias faixas igualmente espartanas já caem no gosto de pronto, caso do já conhecido single “Every Single Night”, com suas cintilações delicadas onde a cantora declara o frágil equilíbrio de um relacionamento amoroso nas letras ao afirmar “the rib is the shell, and a heart is a yolk,…and if we had a double, king-sized bed, we could move in and I’d soon forget”, do harmonioso piano solo de “Werewolf”, que ao ser aberta com os versos “I could liken you to a werewolf the way you left me for dead, but I admit that I provided a full moon” revela como a cantora amadureceu sua visão sobre relações amorosas, de “Regret”, faixa onde a cantora solta a voz num refrão bem ao seu estilo, cantando “I ran out of white dove feathers to soak up the hot piss that comes through your mouth every time you address me” com a já sua característica verve furiosa, de “Anything We Want”, que soa melodicamente familiar, já que a percussão mais encorpada que acompanha o piano lembra bastante o trabalho de Jon Brion ao lado da cantora, e da divertidíssima canção que fecha o disco, “Hot Knife”: o trabalho conjunto da percussão ritmada, do piano de cabaret e dos vocais em coro no refrão, junto com metáforas de caráter ambíguo como “If I’m butter, then he’s a hot knife, he makes my heart a cinemascope, he shows me the dancing bird of paradise”, fariam Fiona Apple entrar no palco de um musical da Broadway com a confiança de uma corista experiente no ramo – e esta é exatamente a palavra que define este disco, tanto para a artista quanto para seus admiradores: só uma artista em uma fase bastante segura de si poderia produzí-lo; em contrapartida, só o tempo vai dizer se com o despojamento de The Idler Wheel os fãs continuarão seguros de toda admiração que tem por ela. Eu acredito que alguns corações podem ficar estremecidos, mas ao final, mesmo que esse não seja no seu todo o disco que os fãs esperaram tanto tempo, é uma obra tão sincera e intensamente pessoal como nunca Fiona havia feito – algo que raramente se vê hoje em dia, infelizmente.
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